“Contos e Crónicas para Ler em Casa”, de Eduardo Quive, conquista público moçambicano

Eduardo Quive, jornalista, escritor, produtor cultural e fundador do Movimento Literário Kuphaluxa, trabalha há mais de 10 anos na literacia e movimento literário, cargo que acumula com o de editor da Revista de Artes e Letras de Moçambique-LITERATA. Homem da cultura, ativamente empenhado na formação de novos leitores, viu neste confinamento forçado a oportunidade de “cultivar o gosto literário” entre os mais jovens, aqueles que tendencialmente mais se afastam do mundo literário. Assim nasceu o projeto “Contos e Crónicas para Ler em casa”, uma colectânea que reúne textos originais de 18 autores e que já teve mais de mil descarregamentos só em 72 horas. A obra, que já vai na segunda edição e se encontra disponível online, está a ser um sucesso a todos níveis, de tal forma que Eduardo Quive se revelou surpreendido. Iniciativas como estas deverão acontecer com mais frequência, explica, até porque os desafios são muitos e está na altura de o país fazer a viragem para as novas tecnologias.

 

Como surgiu a ideia de fazer este livro?

A partir da altura em que foram adotadas as medidas de confinamento e as escolas e universidades foram encerradas, achámos que era necessário criar conteúdo, pois, a verdade é que nós, como país, nunca tivemos políticas de acesso ao livro, alguns programas que permitam o acesso ao livro. Então julgámos que os estudantes, neste período, estariam mais disponíveis e recetivos para a leitura. O passo seguinte foi reunir 15 autores, amigo próximos e pedir-lhes contos que nem sequer fossem inéditos e em 3 dias estava tudo feito. O objectivo era termos 1000 downloads da obra ao fim de um mês, isso já seria positivo, mas em 72 horas já tínhamos atingido esse objectivo. Entretanto, tive amigos meus, escritores também, que reclamaram não terem estado presentes na primeira edição e na segunda edição houve mais três escritores que se juntaram ao projecto.

 

Estava à espera desta receção tão positiva por parte do público?

Ainda hoje falei  com um amigo meu, também escritor, que me disse que teria de haver uma terceira edição, porque ele também queria participar! (risos) Surpreendeu-me muito o impacto deste projecto, mas eu acho que o momento que nós vivemos acendeu uma outra luz nas pessoas. Além disso, aqui, também não há muito a fazer para ocupar o tempo, visto que a rede aberta da televisão não tem assim tanta qualidade… A nossa maior satisfação e recompensa foi termos conseguido chegar aos adolescentes, a este público, pois faltam iniciativas nesse âmbito.

 

Este pode ser o futuro do mercado livreiro, o digital. Mas como é que isso pode ser recompensador a nível financeiro?

Neste momento, a nossa maior preocupação, enquanto escritores,  é sermos lidos, termos um público preparado para ler, pessoas que não só gostem de ler, mas que sejam consumidores regulares de literatura. Eu colaboro com uma das maiores livrarias do país, a Minerva e eu posso dizer que os livros são comprados, mas não é ao nível que se pretende. O livro é dirigido a uma elite, que é muito reduzida.  As escolas públicas estão a formar futuros empresários, empreendedores, economistas que não têm nenhuma relação com o livro e este projecto foi pensado com esse fim, o de formar leitores, porque as escolas não têm bibliotecas em número suficiente  e não apostam nesse crescimento. Agora, claro, a sustentabilidade é um problema muito sério e em Moçambique esse mercado ainda não é sustentável. Ninguém paga pelo conteúdo disponível online e a qualidade da internet não é aceitável.

 

É essencial fazer chegar a literatura às pessoas, especialmente ao jovens, mas como é que se faz esse caminho? É preciso haver mais projectos como este?

Estou envolvido em vários círculos literários já há dez anos e andamos sempre à volta disso, que os mais jovens não lêem… a verdade é que também se está a produzir muito pouco para os jovens.  A literatura moçambicana ou é dirigida ao público infantil, e aí há uma vasta oferta, ou então trata-se de uma escrita direccionada para adultos, que já têm hábitos de leitura. No caso dos mais jovens, aí sim, a internet irá ser muito proveitosa. Só temos de estar no lugar certo, utilizar a linguagem certa e eu acho que os adolescentes vão aproveitar estas oportunidades num futuro próximo.

 

Há mais projectos em que esteja envolvido, que saiam em breve?

A minha natureza de trabalho sempre foi assim. Desde 2016, que decidi trabalhar por conta própria, na área de produção cultural e, como sou jornalista, também trabalho na produção de conteúdos. É muito difícil trabalhar por conta própria, eu costumo dizer que é preciso estar rodeado de gente louca, como o director do centro português Camões, que aceitou divulgar o livro nestes moldes, assim à queima-roupa!(risos) Na minha opinião, o futuro passa pela adaptação do trabalho às várias plataformas digitais,  esse tem de ser o caminho e só assim conseguiremos alguma plateia e rentabilidade. Eu ia lançar um livro em maio, mas já não sei o que irá acontecer agora, uma vez que está tudo parado.

 

Como é que os artistas moçambicanos estão a enfrentar esta crise?

A situação não está boa, embora haja alguma recuperação anímica, uma vez que os centros culturais também já se aperceberam de que parar totalmente não é solução. Há duas semanas muitos artistas estavam a viver uma situação de pressão, por que vivem da arte, de eventos públicos e, de repente, viram-se, sem nada. Está tudo parado e no setor cultural isso foi muito doloroso. Não há apoios, o ministério de cultura nunca foi pensado para criar políticas ativas, nem se sabe se existe dinheiro disponível para a cultura no orçamento de Estado. O discurso ao longo dos anos tem sido de que o sector da cultura é que tem de gerar dinheiro. Então não há nenhum suporte, tem-se vivido de projectos financiados pela União Europeia e agora está tudo fechado. A situação não é boa.

 

Os problemas são tantos, como é que se encontra disponibilidade para continuar?

Eu sempre vivi assim, sei o que é ficar três meses sem ter um negócio, sem ter rendimento, esta situação não é escandalosa ou atípica em termos de gestão de contas, para alguém que trabalha por conta própria.  O nosso papel, o dos artistas, neste momento, é dar ideias, ânimo e ajudar a criar mais projectos que envolvam mais pessoas do mundo das artes, para que possam mostrar o seu trabalho e estar mais ativos.

 

Falámos no início sobre as escolas e do seu papel como mediadores culturais. Agora, com as escolas paradas, com milhares de jovens em casa, como é que vê toda esta situação?

O que eu posso dizer é que se para muito de nós esta situação é estranha, para as instituições está a ser pior ainda, é um desastre total. A telescola regressou à televisão pública, mas muita gente ainda não está bem informada de como funciona a programação. Depois, as instituições de ensino básico criaram fichas de leitura e de trabalho que as crianças têm de ter, no entanto, o estado diz que esse material é gratuito, mas as escolas cobram. A acrescentar a tudo isto ainda há o facto de as crianças estarem a ser deixadas à sua sorte, porque os pais têm de continuar a trabalhar. O nosso sistema não estava preparado para isto. Também tem havido algumas medidas ao nível das operadoras para se criarem pacotes de acesso à internet mais acessíveis para os estudantes, mas ainda ninguém sabe muito bem como é que isso vai funcionar. A nossa esperança é que isto sirva de lição, para que as instituições se adaptem a esta nova realidade, ao digital, mesmo ao nível dos órgãos de comunicação que se vêm obrigados a reinventarem-se nesta altura. A bem ou a mal estas mudanças teriam de ocorrer um dia, seria uma grande burrice da nossa parte, se tudo continuasse na mesma. E, provavelmente, as pequenas e microempresas vão sair muito valorizadas desta crise, porque já tinham percebido o valor da internet, já faziam muitas tarefas a partir de casa e agora consegue perceber-se que é possível produzir desta forma.

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