Em África, a Companhia João Garcia Miguel apresentou peças nos mais diversos locais, com as mais diversas condições, do Centro Cultural Portugal-Angola em Luanda, à província do Cazenga. João Garcia Miguel (JGM) explicou ao e-Global que essa experiência constitui “um exercício importante”. É um desafio, por exemplo, à certeza sobre quais os meios técnicos que são afinal imprescindíveis para se realizar um espetáculo. Reforça que é possível fazer muito, com pouco.
JGM relaciona a viagem a África com o “confronto com a diferença e o inesperado”, que permite aos artistas aprender muito sobre eles próprios, ou seja “acaba por influenciar muito as criações, o modo como vemos o teatro, a maneira como nos vemos a nós em termos sociais, e como vemos a possibilidade do artista e das artes serem significativas e, provavelmente, terem alguma coisa que seja ainda relevante para ser usada e feita enquanto material social”.
Para o encenador, a questão social das artes prende-se com a partilha da herança de Portugal e África, principalmente o que os artistas portugueses podem aprender com África.
A importância das raízes africanas nas criações da Companhia João Garcia Miguel, não foram deixadas de parte. Por isso JGM lembra o papel de África na história de Portugal, e metaforiza, lembrando que “quando há uma relação de amor ou de ódio há sempre uma relação qualquer provavelmente maior que não conseguimos entender. E a nossa relação com África passa por esse lado que não é explicável, mas também por algo que começou, já muito anteriormente”. Assim, torna-se possível “pensar o território como uma coisa que não tem que ser uma coisa de ocupação, mas tem que ser uma coisa de partilha e aprendizagem recíproca”.
É clara a ligação do encenador com África, por isso esclarece: “Tive uma relação muito próxima com Guiné e Angola, sempre me marcou porque vivi lá. Primeiro tem esse aspeto de fazer parte daquilo que eu sou. Depois, do ponto de vista mais artístico, mais contemporâneo daquilo que é o meu trabalho”. E acrescenta que, esta ligação com África, se “coloca nesse desejo de ir à procura do outro, como uma forma de nos obrigar a percebermos qual a posição do artista e a sua relação com o mundo…o que é que o trabalho artístico tem de importância, em termos de valores”. Para JGM, a deslocação a África é ainda um “grande exercício de tolerância, de partilha de experiências”.
E existe também o outro lado, os que estão na plateia para assistir às peças. Surge a curiosidade sobre quais as maiores diferenças entre o público português e o público africano. E as diferenças são muitas, em Angola “olham para o teatro, não como mero exercício de entretenimento, que o é, mas como um exercício de encantamento e de participação”, explica JGM.
O caráter contemporâneo das criações artísticas da Companhia João Garcia Miguel é por vezes entendido como ininteligível, mas JGM garante que em Angola, bem como no Brasil, os espetáculos são acolhidos com uma “clareza e aceitação surpreendentes”. O encenador considera o público curioso e muito atento, e essa aceitação é como que uma “avalanche de emoções. Devastadora até do ponto de vista dos nossos tabus”. É um público que “tem reações que fazem lembrar as reações do começo do século, quando as pessoas viam o cinema ou quando vêm o teatro (…) exteriorizam essa emoção de uma forma muito clara”.
Para o encenador português, à parte de toda a questão artística, a relação com África é “quase vital e muito profunda”. Por fim, explica o sente nestas viagens: “voltar a África acaba por nos dar essas forças que precisamos para continuar a fazer o que fazemos”.
Parte 2 da Entrevista com o encenador João Garcia Miguel
(Fotografias: João Catarino)
SC