Temos de querer sempre mais, não há que ter vergonha de querer mais, de querer chegar mais longe. Temos de ser realistas, claro, para não criarmos falsas expectativas, mas temos sempre que querer mais, senão não seríamos atletas.
Por Ana Gonçalves
Como se não houvesse já motivos de sobra para que o ano de 2020 ficasse para sempre guardado na memória colectiva, os Jogos Olímpicos foram também adiados e vão agora realizar-se entre 23 de Julho e 08 de agosto de 2021. Já os Jogos Paralímpicos decorrerão entre 24 de agosto e 05 de setembro. Atendendo à situação de pandemia gerada pelo novo coronavírus, o adiamento do maior evento desportivo tornou-se irreversível, mas não é um caso inédito, por três vezes esteve suspenso por causa das duas Guerras Mundiais: Berlim 1916, Japão, 1940 e Londres 1944.
Em declarações aos jornalistas, o Comité Olímpico internacional-COI, sustentou que “o adiamento era inevitável e as novas datas foram escolhidas de forma a causar o menor impacto possível aos atletas”.
No entanto, para milhares de desportistas do mundo, representantes das 46 modalidades que farão parte dos jogos, será o adiar de um sonho, terão que voltar à rotina intensa dos treinos, das provas e prepararem-se o melhor possível durante mais um ano, num cenário repleto de incertezas.
Tamila Hryhorivna Holub nasceu na Ucrânia, na cidade de Cherkasy, a 4103,8 Km de distância da cidade de Braga, sítio onde cresceu e ganhou o gosto pela piscina, mais propriamente pela longa distância, 1500m livres. A jovem atleta de 21 anos estará presente pela segunda vez nos Jogos Olímpicos Tóquio 2021, uma vez que assegurou a qualificação a 15 de Junho de 2019, com o tempo de 16:20.81. A atual atleta do Sporting Clube de Braga confessa que não há nada que lhe dê mais prazer do que subir ao pódio e ouvir o hino nacional. Por isso não renega a hipótese de lutar pelas medalhas, até porque um atleta profissional tem de desejar sempre chegar mais longe.
Tamila, qual foi a primeira grande competição internacional que melhor recorda?
A primeira competição internacional que recordo melhor aconteceu na Polónia, quando alcancei o primeiro lugar nos 800m livres. Ainda me lembro da aposta que fiz com a minha mãe. Se eu ficasse em primeiro lugar, ela comprava-me um pão de ló. Naquela altura estava com uma vontade tremenda de comer um pão de ló, que evitava sempre por causa da minha dieta desportiva, mas apetecia-me tanto… mas seria quase impossível, porque naquela prova dificilmente poderia chegar ao pódio. Então, a minha mãe disse-me, “se chegares ao pódio, até te compro dois pães-de-ló!” E assim foi. Acabei por vencer! Essa é a vitória que mais me recordo, porque foi totalmente inesperada e até penso que foi essa prova que me motivou a não faltar a um único treino, a uma única prova internacional, porque foi uma experiência incrível que ainda hoje me faz sorrir.
No ambiente incrível que se vive nas grandes provas internacionais, como é que é estar dentro de uma aldeia Olímpica?
Sinceramente, quando fui pela primeira vez aos jogos, em 2016, já ia preparada, já tinha feito batota… já tinha participado no festival olímpico da juventude europeia, que é, basicamente, os Jogos Olímpicos em versão pequena, e, após essa participação, tive os Jogos Olímpicos da juventude na China. Então, já tinha noção do que iria acontecer. Mas, quando se chega lá, realmente, fica-se de boca aberta com a dimensão de tudo aquilo. É um ambiente onde se quer sempre estar, em que se quer saborear aquilo tudo. As pessoas que lá estão passam o mesmo que nós, não precisamos de explicar, por exemplo, o que é que o símbolo dos Jogos significa, o que acontece muitas vezes… Em 2016, pelo menos para mim, houve um grande sentimento de fair-play, estávamos todos lá, havia muito respeito entre os atletas e também muita festa, porque a toda a hora chegava alguém a sorrir, com uma medalha ao peito, é mágico, é muito bom.
Para quem está do lado de fora, pensa-se sempre que o objectivo final é a medalha, o pódio…
E é!
Sente-se isso, então? Há muito fair play, mas o objectivo final é sempre ganhar?
Claro, claro e hoje em dia cada vez mais. Participar é importante, mas quando estivermos lá não nos podemos esquecer do objectivo principal, que é vencer. Temos de querer sempre mais, não há que ter vergonha de querer mais, de querer chegar mais longe. Temos de ser realistas, claro, para não criarmos expectativas falsas, mas temos sempre que querer mais, senão não seríamos atletas.
Para chegar a este patamar, quantas horas treina por dia, em média?
Numa fase normal, treino 5 horas dentro de água, mais 1 hora de ginásio. Ou seja, treino duas horas de manhã e três à tarde. Aos fins de semana, treinamos só uma vez por dia, já ajuda… (risos)
É preciso muita força de vontade para seguir essa rotina de treinos tão intensa?
É hábito!
A modalidade escolhida pela Tamila é a de longa distância. Deveu-se a que motivo essa escolha?
Puro masoquismo! (risos) Desde os 12, 13 anos, quando ainda estava nos infantis, que nunca gostei muito de outros estilos, mariposa para mim era horrível, costas não me dizia nada e crawl era aquilo que de facto gostava mais, porque me entusiasmava quando competia, senti que evolui muito quando nadava crawl, até mesmo nos treinos. Nós tínhamos um grupo de treino muito bom, mas poucos ficaram na natação, muitos já desistiram e o grupo era constituído maioritariamente por rapazes…
Isso também acaba por ser um grande problema em Portugal. Encontrar adversários à altura para competir. Foi devido a esse motivo que se deu a passagem pelos E.U.A?
Sinceramente, foi mesmo por isso. Tive um amigo que me falou sobre essa hipótese e ficou-me na cabeça, depois tive uma época francamente boa em 2016 e em 2017, quando já estava no 12º ano recebi várias convites de colleges norte-americanos que me perguntaram se eu gostaria de treinar lá e isso para mim foi uma alegria enorme, porque era algo que eu queria muito. Até porque é preciso perceber que o ciclo olímpico é muito duro e no ano antes dos Jogos, o atleta dá tudo aquilo que tem, é preciso depois um ano de descanso. E eu senti que precisava de mudar de lugar, de ver outras pessoas e senão é aos 18 que se tenta algo de diferente não será, por exemplo, aos 27. Achei a ideia boa e não tinha nada a perder. Aliás, agora que estou de volta a Portugal, sinto que essa experiência foi muito enriquecedora, sinto que aprendi muito.
Que diferenças é que há entre os dois países na forma de tratamento dos atletas?
Por exemplo, eu tenho uma tatuagem no pescoço, da altura em que estive nos Jogos e quando apanho o cabelo, nota-se. Lá, nos E.U.A, todos me perguntaram se eu já tinha ido aos Jogos e ficavam fascinados com isso. Cá em Portugal, primeiro, ninguém pergunta, ou então não sabem muito bem porque é que eu tenho os anéis tatuados, ou mesmo que saibam, não ligam muito. Isso pode dever-se ao facto de as pessoas cá não praticarem tanto desporto… claro que estamos a falar de realidades completamente diferentes, a escala é muito maior lá, já em Portugal, a percentagem de pessoas que praticam desporto é bem menor e por isso poucas pessoas têm a noção do que é ir aos Jogos Olímpicos… Depois, claro, há diferenças nos treinos, lá fazia-se muito mais ginásio do que aqui e utilizavam-se outros métodos… Ao nível dos estudos, havia também sempre uma pessoa responsável para nos orientar, com a qual nos reuníamos, para ela saber como é que nós íamos nos estudos… por exemplo, se obtivéssemos uma média inferior à que seria expectável, seríamos proibidos de entrar em competições. O lema lá é o seguinte; “és atleta, mas também és estudante”, por isso, os estudos não podem ficar para trás. Em Portugal, sejamos realistas, os estudos ficam muito para trás, se o objectivo passar pela alta competição.
Por vezes os pais sentem que os filhos podem não ter tempo para conjugar a vida desportiva com os estudos, mas o rigor e a exigência do desporto podem ajudar a melhorar o rendimento escolar. Acabou por ser esse o caso?
Os meus pais como vieram de um background soviético sempre deram muito valor ao desporto, porque foi algo que lhes foi incutido. Eles sabem respeitar e valorizar o trabalho dos desportistas. Por exemplo, quando eu estava no 11º ano, que foi o ano dos Jogos Olímpicos de 2016 e, ao mesmo tempo, ano de exames, de geologia, biologia físico-química… nessa altura, o meu treinador falou comigo, no início da época, e disse-me que estava a poucos segundos de conseguir qualificar-me. Eu meti na cabeça que iria conseguir, que tinha de conseguir e aí falei com os meus pais e disse-lhes que os Jogos acontecem uma vez de 4 em 4 anos, exames eu podia repetir todos os anos, a minha vida inteira se fosse preciso. E os meus pais no que toca a apoiarem-me, sempre foram impecáveis… aliás, o meu sucesso é muito graças a eles, foram muitos dias, quase todos os dias, quando eu era mais nova, em que eles acordavam às 06h30m para me levarem para os treinos e todos os fins de semana, em que em vez de ficarem descansados no sofá me levavam às provas. É preciso ter esse espírito de sacrifício, essa capacidade. E essa é uma grande diferença que eu noto para os dias de hoje. Há infantis de 12, 13 anos que faltam aos treinos, porque dizem que têm de ir estudar, ora pelo menos, falo dos casos que eu conheço, até ao 9º ano, basta estar com muita atenção nas aulas. Agora, a partir do secundário já é mais complicado, porque chegar a casa à noite e ter de acordar tão cedo e ainda ter de pegar nos livros, acaba por ser complicado. Mas acho que os pais estão a proteger excessivamente os filhos.
Outra das lutas antigas travadas pela Tamila, tem sido a importância dada ao futebol em detrimento de outras modalidades desportivas. Essa luta ainda continua?
Os meus esforços são uma gota de água num oceano infinitamente grande… acho que é um esforço que não deveria ser empreendido por uma pessoa só. Eu compreendo que tenho a sorte de já ter alguma relevância no desporto nacional e poder fazer essas declarações. Se eu fosse uma atleta de um escalão mais baixo, por exemplo, ter dito isso poderia ser muito mau para mim, mas eu acredito cada vez mais que a melhor maneira de mostrar que as pessoas estão erradas é através dos resultados. De vez em quando é preciso falar, mas acho que a melhor maneira de convencer as pessoas do contrário é treinar, treinar e obter resultados, para que as pessoas ouçam que tivemos uma campeã da europa de natação e assim poderem dizer às crianças, “olha, ela está ali nadar, não queres experimentar também?” Para mim essa é a melhor recompensa que eu posso ter… o facto de poder inspirar alguém a tentar nadar, a experimentar uma modalidade diferente. Até porque muita gente me pergunta se eu comecei porque tinha talento, mas eu não sabia se tinha talento ou não. Acho que tive a sorte de os meus pais, quando eu era pequena, me terem inscrito em natação, danças de salão e cavaquinho, por acaso gostei muito de danças de salão, mas tive de desistir… a verdade é que experimentei várias atividades e a natação acabou por resultar… agora se nunca experimentarem nada, ficarem em casa e depois dizerem que é uma questão de talento… não é verdade. É trabalho, de talento há muito pouco.
Em relação a este ano, pode considerar-se um ano perdido? Já estava tudo preparado… como é que um atleta encara esta situação?
Foi duro. Foi por fases. Houve alturas em que até parecia que estava tudo a correr bem, outras vezes sentíamo-nos muito pressionados. Mas, a partir do momento em que assumimos este compromisso de sermos atletas de alta competição, nós, entre aspas, fazemos um contrato connosco mesmos. Eu soube desde o início que eu não teria fins de semana, que poderia não estar cá no meu aniversário, nem no Ano Novo, Natal ou Páscoa… isto significa que a vida de atleta já pressupõe que tudo possa acontecer, claro que toda esta situação foi totalmente inesperada… agora o melhor que há a fazer é transformar tudo isto que aconteceu numa prioridade. No meu caso, eu até acho que tive uma época realmente muito boa, muito bem trabalhada e foi um desespero para mim os Jogos terem sido adiados, mas eu sei que houve ali uma fase em que eu poderia ter dado mais um pouco de mim e este tempo extra pode der uma segunda chance para melhorar. Por isso, o que nós todos devemos fazer é encarar isto como uma segunda oportunidade, caso contrário acabamos todos por ficar malucos (risos)…
No futuro, o caminho passará irremediavelmente pela natação?
Na minha opinião há duas categorias de atletas. Há aqueles que querem ficar para sempre ligados ao mundo desporto e os outros que não querem de modo algum ver o desporto à frente. Eu estou na segunda categoria. Tem sido um esforço tão grande, tanto trabalho, que quando isto tudo acabar, sinto que vou querer estar 10 anos sem ir a uma piscina, acho que não vou conseguir ver uma piscina à frente. Além disso, quando dizem que é aborrecido, é mesmo. O que é importante de perceber, é que durante uma época o atleta passa por muitos altos e baixos e há sempre ali uma fase, que acontece mais ou menos em dezembro, em que já estamos com uma carga de treinos realmente muito alta e, no meu caso específico, eu penso quase todas as semanas, ora bem, é para a próxima que vou desistir, não quero mais, já chega… acontece muitas e muitas vezes… faz parte. Agora, pensando mesmo no futuro gostaria de seguir medicina, é um bocado diferente, mas também é algo que eu desejo muito desde criança.
Qual o melhor resultado possível para Tóquio 2021? É possível ambicionar uma medalha?
É difícil! Mas, nunca se sabe. O campeonato da Europa em que eu participei quando fui júnior, na primeira prova de 800m, em que fui vice-campeã, quando chegou a altura de hastear as bandeiras, eu vi a bandeira de Portugal à minha frente, mas estava a tocar o hino da Hungria e eu lembro-me de pensar, “eu quero tanto, tanto ouvir o hino de Portugal, que eu vou fazer de tudo para o ouvir.” E isso foi uma das coisas que mais me motivou muito para daí a uns dias ter alcançado o ouro. Foi um momento incrível, o ver a bandeira, ouvir o hino… é incomparável, é a experiência mais recompensadora para um atleta, é o momento em que realmente se percebe que estamos no caminho certo.