“Zelensky continua a apelar a uma guerra mundial só para defendê-lo da Rússia”

Major-General do Exército Raul Luís Cunha

O já reformado Major-General do Exército, Raul Luís Cunha, foi Conselheiro Militar do Representante Especial do Secretário-Geral da ONU no Kosovo (2005-2009). Possui um Mestrado em Ciências Militares pela Academia Militar e é doutorando em História e Estudos de Segurança e Defesa no ISCTE-IUL. 

Raul Cunha tem participado em noticiários televisivos para comentar o atual conflito entre a Rússia e a Ucrânia. O e-Global entrevistou-o para conhecer melhor a sua opinião em relação ao que se está a passar no Leste da Europa. 

e-Global: Pode explicar, de forma resumida, o que já se passava na Ucrânia antes de este conflito ter agravado? Porque apanhou muitas pessoas desprevenidas, que não sabiam que a Ucrânia já estava em guerra há mais tempo… 

Raul Luís Cunha: No meu entender, as origens dos conflitos têm sempre antecedentes ainda mais longos do que aquilo que normalmente acaba por ser o detonador, digamos assim, das ações mais violentas. E já há muito tempo que havia um nacionalismo ucraniano forte, e também há do outro lado um fortíssimo nacionalismo russo. Não nos podemos esquecer nunca disso. 

“O Presidente Yanukóvytch tinha sido eleito normalmente, mas não alinhou com os interesses do Ocidente.” 

Em antecedentes mais recentes eu costumo situar naquilo que aconteceu em 2014, em “Maidan” [grande manifestação na Ucrânia]. O Presidente Yanukóvytch tinha sido eleito normalmente, mas não alinhou com os interesses do Ocidente. Os Estados Unidos tinham sérias desconfianças em relação à postura dele. A União Europeia tinha proposto um acordo a esse Presidente e ele, de início, teve até alguma vontade de aceitar o acordo, mas o problema era mais a existência de uma ajuda imediata e volumosa em termos de numerário. 

“As manifestações foram-se arrastando e, em determinada altura, entraram nessas manifestações os elementos extremistas de direita, que conseguiram transformar aquilo quase numa revolta armada.” 

A União Europeia não estava disponível para fornecer imediatamente essa ajuda, ao contrário da Rússia, que se disponibilizou para oferecer esse numerário. Daí ele ter optado pela ajuda russa, sendo, ainda por cima, também um russo, etnicamente. Era um ucraniano russófono. O que é que aconteceu? A população não gostou e, agitada, ou tendo sido fomentada essa agitação pelo Ocidente, e sobretudo pela União Europeia e pelos Estados Unidos, veio para a rua demonstrar o seu desagrado. 

As manifestações foram-se arrastando e, em determinada altura, entraram nessas manifestações os elementos extremistas de direita, que conseguiram transformar aquilo quase numa revolta armada. Entretanto, Yanukóvytch chegou a um acordo com os principais partidos ucranianos. Mas o que é facto é que, no dia seguinte a esse acordo ter sido assinado e testemunhado pelos ministros dos Negócios Estrangeiros de três países, ele foi deposto e teve de sair do país. 

“E houve uma série de acontecimentos que levou a que as posições se extremassem imenso.” 

E, a partir daí, sucedeu-se no Governo da Ucrânia um governo extremamente antagónico dos próprios ucranianos russos, um pouco por influência daqueles partidos extremistas quase neonazis, alguns mesmo neonazis. E houve uma série de acontecimentos que levou a que as posições se extremassem imenso. Houve um ataque aos manifestantes contra um novo Governo em Odessa, onde foram mortas dezenas de pessoas. Em Donbass as manifestações contrariaram o que se tinha passado em Kiev [capital ucraniana] e a posição do Presidente. E o Governo em Kiev, que tinha tomado o poder em substituição de Yanukóvytch, atacou as regiões separatistas. 

Depois de umas primeiras derrotas foram assinados acordos em que o Governo ucraniano se comprometia, entre outras coisas, a dar autonomia àquelas regiões, que ficariam um pouco como os Açores e a Madeira, tinham direitos em relação às alfândegas, etecetera. O que aconteceu? A Ucrânia nunca cumpriu a sua parte dos acordos. 

Esses eram os Acordos de Minsk? 

Sim, os famosos Acordos de Minsk. Após Minsk 1, o Governo ucraniano tentou reduzir novamente pela força, enviando ainda mais tropas para as regiões separatistas. O que aconteceu é que foi novamente derrotado e, portanto, fez-se o Acordo de Minsk 2. Daí se falar muito nos Acordos de Minsk 1 e 2. Foram, sobretudo, porque tinha havido uma grande força de militares ucranianos cercada e foi a única maneira de os ucranianos conseguirem que aquele pessoal fosse libertado. 

Durante estes oito anos continuou sempre a haver pressão da Ucrânia, nomeadamente das forças mais extremistas, sobre essas zonas separatistas, com bombardeamentos, com violações de cessar-fogo, etecetera. Havia a Organização de Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) no terreno para verificar e registar todos os dias o que se ia passando lá, e chamava a atenção das duas partes [ucraniana e russa] para não haver tantos problemas. O que é facto é que nesses oito anos houve cerca de 14 a 15 mil mortos naquela região. 

Ou seja, falam muito de a Rússia querer ficar com essas zonas, mas na parte do Ocidente omitem um pouco a culpa, digamos, da Ucrânia? 

Exatamente. No meu entender, a Ucrânia tem culpas em relação a isso, porque nunca tentou resolver… aceitar, por exemplo, os acordos que tinha assinado e fazê-los cumprir. Aí não haveria problemas. Pelo menos não davam argumentos ao Putin [Presidente da Rússia] para invadi-los como invadiu. 

Claro que a invasão atingiu proporções que são muito difíceis de justificar e [os russos] violaram, inclusivamente, todos os acordos e leis internacionais que existem sobre estas coisas. 

Há, entretanto, a pressão exercida por este Presidente ucraniano [Volodymyr Zelensky], que, além de querer resolver a questão da Crimeia e a questão dos separatistas, queria aderir à NATO. Ora essa é uma das linhas vermelhas, o que se percebeu já há muito tempo por parte da Rússia. 

Sim, a Rússia sempre avisou… 

Sim, que não admitiria nunca a adesão da Ucrânia à NATO. Tal como não admitia a da Geórgia. E daí nasce a situação em que estamos. 

“(…) a Ucrânia tinha aumentado extraordinariamente o seu poder militar, tinha recebido uma série de ajuda militar dos Estados Unidos (…)” 

E recentemente, quando começou a haver a pressão dos americanos a chamar a atenção para as forças russas estacionadas na fronteira da Ucrânia, eu chamo a atenção que, antes disso também, a Ucrânia tinha aumentado extraordinariamente o seu poder militar, tinha recebido uma série de ajuda militar dos Estados Unidos e tinha começado a concentrar forças junto à fronteira das tais regiões separatistas, junto aos limites dessas regiões. E, ao concentrar ali forças, a resposta da Rússia foi concentrar as suas forças na fronteira da Ucrânia, como que dizendo “Se vocês atacarem essas regiões separatistas, nós vamos em defesa delas”. 

“ (…) Zelensky foi dizer que até queria ter armas nucleares para se defender.” 

A situação foi-se agudizando, a Rússia dizia que estava em exercícios, que não tinha intenção nenhuma de atacar a Ucrânia… não sabemos se tinha ou não… eu penso que tinham. Mas, de qualquer das maneiras, a situação foi-se agravando até um ponto em que, não sei porquê, Zelensky foi dizer que até queria ter armas nucleares para se defender. E a partir desse momento penso que foi quando Putin decidiu que tinha mesmo de invadir a Ucrânia, quando começaram as ameaças de um conflito subir para uma escalada muito maior. 

É nesse momento que, em vez de haver uma operação militar se calhar para defender as regiões separatistas, passou a ser considerada pelos russos uma operação militar para substituir o Governo de Zelensky em Kiev. Penso que foi isso que levou a que houvesse aquela invasão e, volto a dizer, indesculpável em termos de direito internacional. Há sempre outras maneiras de resolver o conflito. 

“(…) [O Presidente da Ucrânia] continua a apelar a que haja uma guerra mundial só para defendê-lo da Rússia.” 

Eu penso é que o Ocidente deveria ter intervindo e acalmado os instintos bélicos de Zelensky, devia ter imediatamente dito “Olha, se te metes em confronto com os russos, a única coisa que podemos fazer é dar-te armas, mas mais do que isso não podemos fazer. Porque senão entramos nós também em guerra com os russos, e não queremos uma guerra mundial”. O Zelensky ainda não compreendeu isso e continua a apelar a que haja uma guerra mundial só para defendê-lo da Rússia. Quer que toda a gente se envolva em guerra com os russos porque ele resolveu também provocar os russos para uma guerra. 

Zelensky tem feito discursos um pouco manipuladores, do género “Se vocês [Ocidente] não participarem, vão ter as tropas aí, a culpa vai ser vossa”…? 

Exatamente. O que acontece neste momento, e estão até a tentar fazer dele um herói, mas, face à desproporção de forças, face a ele sentir talvez que irá perder, está constantemente a apelar à ajuda militar direta da NATO e dos Estados Unidos. Está, inclusivamente, a criar todo um número possível de incidentes que possam levar as forças militares da NATO a intervir. 

Como, por exemplo? 

Essa questão das mortes de civis, os ataques a hospitais, a questão de não deixar os civis saírem das cidades, a questão dos ataques às centrais nucleares… tudo isto são desculpas a tentar que a comunidade internacional e, sobretudo a NATO e os Estados Unidos, intervenha. Mas esquecendo-se, ou sabe-o e nem sequer tem isso em consideração, que se houver essa intervenção da NATO naquela região, a NATO entra em guerra com a Rússia. 

E há esse risco? 

Eu penso que a NATO não vai intervir. Espero bem que não o faça porque, se houver algum doido que resolva fazer alguma coisa, as consequências vão ser terríveis. E, portanto, espero bem que não haja ninguém que o faça. 

A maneira como se tem também enganado a opinião pública em relação a uma série de assuntos… eu chamo a atenção dos corredores humanitários, por exemplo. E outra questão que também chamo sempre a atenção é que tem havido, da parte das forças militares russas, muita contenção e uma tentativa de evitar, o mais possível, baixas civis. Mas o que é facto é que isso não ajuda às intenções de Zelensky, que quer que a NATO intervenha. 

Quer causar mais comoção na restante Europa para ver se os povos incentivam os seus governos a participar? 

Exatamente. Quando eles dizem que os russos não deixam que as pessoas saiam das cidades, eu acho que é exatamente o contrário. Rigorosamente quem não tem interesse que haja civis nas cidades são os russos. Quem tem interesse em manter civis nas cidades para que os russos não os ataquem são os ucranianos. 

E a implementação da Lei Marcial, que proíbe os homens de sair? 

E não só. Eu tenho vídeos na Internet que mostram que muitos estudantes estrangeiros foram impedidos de sair da Ucrânia, foram obrigados a ficar onde estavam, nos campos universitários das cidades. Pode assistir-se a manifestações deles a pedir que os deixem ir para casa. E as autoridades ucranianas não lhes deixam sair. 

“(…) faz todo o sentido que os corredores humanitários sejam em direção à Rússia, pelo menos uma parte deles.” 

Na cidade de Mariupol, quando vem o Presidente da França [Emmanuel Macron] dizer que é quase indigno que os corredores humanitários sejam para a Rússia, temos de pensar que nas cidades de Mariupol e Kharkiv vivem imensos ucranianos russos, que provavelmente se sentem mais seguros na Rússia do que do lado ucraniano. E, portanto, faz todo o sentido que os corredores humanitários sejam em direção à Rússia, pelo menos uma parte deles. As forças militares russas só podem assegurar a proteção dessas pessoas nos corredores humanitários em zonas que eles controlam. 

Os corredores humanitários que passem por zonas que eles não controlam, a Rússia não se pode comprometer à segurança desses corredores, porque não se sabe o que as forças ucranianas podem fazer, nomeadamente os tais elementos extremistas, que o Ocidente insiste quase em esconder e dizer que não existem, mas que existem e são em número extremamente elevado. 

“(…) há ‘bullying’ nas escolas aos miúdos russos aqui em Portugal (…)” 

Tem sido uma preocupação muito só para um lado. No Dia da Mulher, por exemplo, desejei a amigas um feliz Dia da Mulher e disse que lembrava, particularmente, que as mulheres ucranianas e russas estavam a sofrer. E houve logo quem perguntasse “As russas?”. Então as russas não estão também a sofrer? Não têm também os seus maridos e filhos a combater e a morrer? Onde está a humanidade desta gente? Nós, ocidentais, que sempre pugnámos por sermos civilizados, ou mais civilizados e eticamente mais corretos, e depois temos este tipo de atitudes? Em que, neste momento, há ‘bullying’ nas escolas aos miúdos russos aqui em Portugal? Os portugueses, que sempre foram pessoas de bem em relação a estas coisas, que aceitam pessoas de todas as origens, e que depois têm estes comportamentos horríveis contra crianças, só porque são russas? 

É também o efeito da comunicação social? 

Aí, se calhar, a nossa comunicação social está numa campanha de propaganda de tal ordem, que aquelas pessoas que tentam ter uma voz isenta no meio desta confusão toda, são imediatamente alcunhadas de comunistas ou de russófilos, ou de servidores do Kremlin, ou putinistas. 

A mim chamaram-me um general putinista. Mas com isso posso eu bem… só é estranho dizerem isso de uma pessoa que, durante 46 anos, esteve a trabalhar num país que era membro da NATO e que tinha forças militares da NATO. Sempre trabalhei em Estados maiores e internacionais da NATO. E virem agora dizer que eu sou um general putinista, só dá é vontade de rir, como é óbvio. 

Nós sabemos que na Rússia a comunicação social é bastante controlada. Mas o Ocidente acaba por fazer, por vezes, o mesmo? 

Exatamente. No caso da eliminação da comunicação social russa, então sobretudo em Portugal, quando vemos que no nosso país se aceitou cumprir uma diretiva da União Europeia, que é contrária à Constituição portuguesa, é inconstitucional… não demos preferência a uma lei fundamental nossa, aos direitos e liberdades que estão estabelecidos na nossa Constituição, que diz claramente que temos a liberdade de informação e que há liberdade de imprensa… e penso que o Governo poderia impedir imediatamente uma coisa dessas, mas o que é facto é que as nossas liberdades constitucionais foram violadas sem respeitar a nossa Constituição, que só admite restrição de liberdades em caso de Estado de Sítio. 

“Volto a dizer que é a liberdade da imprensa e, sobretudo, a minha liberdade, de me informar, que foi proibida.” 

Isto foi uma situação que o Tribunal Constitucional deveria reverter imediatamente. E, no entanto, deixamos que uma diretiva da União Europeia impeça o cumprimento da Constituição portuguesa. Isto é gravíssimo e cria um precedente muitíssimo mau. Porque durante a pandemia e as situações de Estado de Emergência havia a possibilidade de reverter alguns dos direitos constitucionais. Mas agora não estamos nessa situação, isso acabou. Neste momento não havia ninguém que tivesse o direito ou o poder de fazer uma coisa dessas. 

E o que é facto é que aceitámos e ninguém diz nada. E a nossa imprensa devia lembrar-se que pode acontecer-lhe o mesmo depois, por outras razões, e se calhar aí não vão gostar que a sua liberdade seja cortada. Volto a dizer que é a liberdade da imprensa e, sobretudo, a minha liberdade, de me informar, que foi proibida. Isso é muito grave. Agora não posso aceder, a não ser através de interpostos meios, a várias televisões. Neste momento para ouvir as coisas com o mínimo de seriedade e de imparcialidade tenho de ir à ITV, que é a televisão indiana. É aquela que tem retratado a coisa e onde se criticam ambos os lados no que fazem de errado. 

“Onde estão os nossos princípios de isenção, até de democracia, no meio disto? Deixaram completamente de existir.” 

Muitas das verdades que nos são escondidas são lá relatadas. Eu afinal percebi, por exemplo, que não tinha havido nenhum ataque a uma central nuclear. O que tinha havido era quase o contrário… São estas situações que depois, quando relatadas, vão precisamente influenciar as pessoas a ficarem com raiva e antagónicas em relação a um dos lados. Mas o que é isso? Onde estão os nossos princípios de isenção, até de democracia, no meio disto? Deixaram completamente de existir. Eu por dizer aquilo que disse fui já objetivamente atacado verbalmente em vários sítios. Já me chamaram tudo e mais alguma coisa só porque não estou a seguir a cartilha instituída ao nível da União Europeia e dos Estados Unidos. Isto é vergonhoso. 

Antigamente, por exemplo, quem defendia os judeus no tempo da Alemanha Nazi era chamado de “judeu” e alguns foram mortos. Sempre foi uma maneira de atacar, ao longo da História, quem pensava diferente… 

O azar é que, na realidade, os militares que participaram nestas missões de paz a nível internacional, habituaram-se a ter de olhar muito bem e a ter que ser isentos, olhando para aquilo que acontece e para aquilo que são os dois lados da questão. E é isso que perturba as pessoas, haver na realidade oficiais que atingiram um determinado patamar da carreira militar e que não estão a seguir cegamente as orientações políticas dos indivíduos que tentam controlar isto. 

Só por uma pessoa ser isenta acaba por ser acusada do pior. Eu vi isso acontecer até naqueles conflitos em que íamos lá, embora fossemos uma força a interpor-se, de certa maneira, e a tentar gerir ali o conflito, mas se eu dizia a alguém “Atenção, aqui os maus não são só os sérvios, são também os bosníacos e os croatas”, imediatamente me caíam em cima a dizer que eu era pró-sérvio. Sou pró-sérvio? Quando vejo no terreno as coisas mais desumanas feitas por forças quer sejam bosníacas, sejam sérvias, sejam kosovares, sejam croatas? Todos eles fazem coisas más. 

E o que pensa desta atuação do Presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, em relação à Ucrânia? 

Os Estados Unidos ganharam muito com este conflito, como é óbvio. Havia dois grandes interesses americanos em jogo. Agora fala-se que até havia mais, mas isso ainda não tenho confirmação para poder dizer. Mas, sobretudo, há a venda de material militar. Os Estados Unidos já venderam muitíssimo material militar. O complexo militar industrial americano tem tido lucros, e isso é importante. 

“Os americanos querem vender o seu gás líquido à Europa, mas a Europa está muito dependente do gás líquido russo.” 

Depois há a famosa questão do gás líquido. Os americanos querem vender o seu gás líquido à Europa, mas a Europa está muito dependente do gás líquido russo. E porquê? Porque, além de poder chegar diretamente à Alemanha, ainda por cima é três vezes mais barato do que o gás americano. Porque o método de extração do gás líquido americano é mais custoso e depois ainda há que pagar o transporte do gás dos Estados Unidos para a Europa. Em contrapartida, através dos gasodutos, chega da Rússia à Alemanha muito mais rapidamente e, sobretudo, três vezes mais barata. 

Neste momento os Estados Unidos conseguiram evitar aquilo que mais temiam, que era a duplicação dessa dependência alemã do gás russo, porque é um famoso gasoduto, Nord Stream 2, que já foi suspensa a sua utilização. Ainda nem tinha começado e agora já não vai começar, porque a Alemanha já diz que afinal não o vai fazer. E o gás vai ficar-nos muitíssimo mais caro. 

“(…) vários outros países da Europa, que eram dependentes do gás russo, vão passar agora a ter de comprar gás aos americanos, que era o que eles queriam.” 

No caso português talvez não muito, porque o gás que compramos vem de Marrocos e da Nigéria. Antigamente vinha da Argélia, mas deixou de vir. Através do Porto de Sines estamos a receber o gás que necessitamos. Mas vários outros países da Europa, que eram dependentes do gás russo, vão passar agora a ter de comprar gás aos americanos, que era o que eles queriam. Mais uma vantagem. 

Como está a ver as sanções contra a Rússia? 

As sanções fazem parte do jogo e eu penso que Putin estará precavido contra a grande maioria delas. Só que elas, na realidade, atingiram um nível extremamente grande, de maneira que não sei… isto vai ter com certeza efeitos sobre a Rússia. 

Segundo sei, o povo já está a sentir muito na inflação dos alimentos… 

Há de sentir isso com certeza. 

Mas, por outro lado, Putin tem também o apoio da China… 

Sim, mas não chegará para aliviar a questão das sanções. Tem também a Índia, que penso que não estará assim tão distante da Rússia como isso. Mas, de qualquer das maneiras, não chega. O povo russo vai sentir. 

Um dos oficiais russos que trabalhou comigo e com quem eu mantenho contacto já se queixou que ficou com 80% do seu dinheiro perdido, porque o tinha nos bancos que foram… não pode utilizar os cartões de crédito dele. Há coisas que estão a sentir, nitidamente. Não sentirão, como nós, o aumento do preço dos combustíveis, nem do gás, mas se calhar noutras coisas vão sentir. 

“A população russa vai sentir também muito essas sanções, sem dúvida.” 

O grande problema vai ser o desemprego. Toda aquela gente que trabalhava nas lojas internacionais… e nos próprios bancos, na bolsa, nas instituições financeiras… aí vai haver problemas. Mas sobretudo no comércio muita gente vai ficar sem emprego, vão ter grandes dificuldades. O rublo [moeda russa] vai valer muito menos… A população russa vai sentir também muito essas sanções, sem dúvida. 

Mas nós aqui também vamos sentir, como é o caso dos fertilizantes. A Rússia era um dos maiores exportadores para a Europa. Milho e trigo a mesma coisa. A Rússia e a Ucrânia eram os grandes exportadores e deixa de haver. Há uma série de produtos que vai ser interessante ver o que vai acontecer… 

E não poderá isso levar a uma Terceira Guerra Mundial? Porque, olhando para a História, grandes crises antecederam a grandes guerras… 

Eu acho que o que pode levar a uma Terceira Guerra é a falta de sentido de responsabilidade de muita gente que está em funções de responsabilidade. Isso é que pode levar à guerra. E sobretudo a falta de juízo de alguns dos nossos governantes, de políticos. Eu, por exemplo, quando ouço as declarações da doutora Ana Gomes [membro do Partido Socialista] fico horrorizado. Uma pessoa com responsabilidade que vem dizer que se a NATO não consegue ir defender a Ucrânia então não serve para nada… 

A NATO defendeu-nos durante uma data de anos. Serve para alguma coisa. Não pode servir é para desencadear guerras. E se a NATO for intervir na Ucrânia vai desencadear uma guerra. 

E a Ucrânia não faz parte da NATO. Até agora, a NATO está a agir bem a nível legal, correto? 

Eu penso que tem de ser assim, e não é só a questão de legalidade. Por muito que nos custe. Para já, entendo que quem criou esta situação não foi a Rússia. A Rússia ajudou, mas os outros também têm a sua responsabilidade. E, como tal, também têm a responsabilidade de ajudar a não escalar ainda mais esta tensão e esta guerra. Em vez de acicatar ainda mais as pessoas, deveriam fazer precisamente o contrário, para que se chegasse a um acordo. Aceitarem as condições que são consideradas linhas vermelhas. 

“Sobretudo quem sofre sempre nessas situações é o povo.” 

Em vez de andarem a dar armas e continua a guerra… morram mais pessoas, haja mais refugiados, haja mais gente a sofrer. Sobretudo quem sofre sempre nessas situações é o povo. E parece que esta gente toda quer que o povo sofra ainda mais. 

Até a comunicação social, as televisões, parece que para poderem ter mais notícias, para poderem vender ainda mais… é incrível que se faça isto. Que se esteja a promover uma coisa só para depois poderem fazer diretos cheios de imagens aterradoras. E quando não têm esses diretos com imagens aterradoras vão buscar coisas antigas e retratam-nas como se se tivessem passado agora. Há imensos casos que já foram desmontados. 

Uma última pergunta, que tem a ver com a Lei Marcial. Esperemos não chegar a isso, mas como seria, na prática, se esta lei fosse aplicada em Portugal? 

Então, as tais liberdades constitucionais ficam suspensas. Uma série delas tem de ser anunciada no momento em que for decretada essa Lei Marcial. Tem de ser dito logo quais são as liberdades que ficam cortadas, imediatamente, e deixa-se de poder praticar uma série de coisas. Pessoas como eu deixam de poder falar e, se falarem, vão presas. 

Pergunto mais a nível de guerra… de ir para a guerra. Na Ucrânia os homens dos 18 aos 60 são obrigados a lutar. E noticiaram que a idade tinha baixado para os 16 anos. Há o risco de isso acontecer em Portugal com a implementação da Lei Marcial e por sermos da NATO? 

Não. A nossa lei não prevê as coisas a esse ponto. Nós temos uma situação em que vão primeiro os que estão no ativo, depois irão aqueles que estão na reserva. A chamada reserva territorial. Nós não temos, por exemplo, aquilo que a Ucrânia tem, que são unidades de defesa territorial. Nós temos as nossas unidades militares e depois o seu efetivo será completado com aqueles militares que estão na reserva. 

“Do que eu tenho receio é que nos caia em cima alguma coisa, no meio de um conflito generalizado…” 

A reserva em Portugal… os militares ficam na chamada reserva territorial até aos 45 anos. Ou seja, todos aqueles que passaram pelas fileiras, que tiveram instrução militar e que, entretanto, saíram, até terem 45 anos são suscetíveis de voltar a ser chamados. Mas não se vai chamar toda a gente dos 18 aos 60 anos. A não ser que o país seja diretamente atacado, o que me parece pouco crível. 

Do que eu tenho receio é que nos caia em cima alguma coisa, no meio de um conflito generalizado… 

Há o risco de cair, por exemplo, uma bomba na nossa base da NATO? 

Há pois. Nós temos a Base das Lajes [na Ilha Terceira, nos Açores], que recebe aviões americanos. Não é uma base exclusivamente portuguesa. Mas depois, evidentemente, todos os locais militares e bases aéreas serão objetivos para uma força inimiga. Embora, no caso de um conflito Rússia-NATO, obviamente as instalações NATO é que serão objetivo de ataque. 

“Espero que quem defenda isso [intervenção da NATO na Ucrânia] esteja preparado, e preparado para que vários portugueses morram.” 

Nós temos a escola da NATO em Oeiras, é a única que existe. Mas aquilo não é tão significativo como isso. Espero bem que eles não se lembrem de mandar para aqui nada… Acho é que temos de ter, imediatamente, uma grande preocupação com os Açores, porque temos que garantir a defesa de toda aquela área do Atlântico. Mas não tenhamos dúvidas quanto ao nosso lado. Nós somos da NATO e, portanto, temos que defender aquilo contra os russos. E temos que ter a noção de que, se houver esse conflito mundial, vai ser nuclear. Espero que quem defenda isso esteja preparado, e preparado para que vários portugueses morram. 

Cátia Tocha

15 Comments

  1. Espirito Santo

    extremamente interessante a entrevista,obrigado

  2. Espirito Santo

    excelente entrevista ao Snr General, obrigado

  3. António

    Acho que os magalas portugueses – como este, defendem putin por ele ser multibilionário.
    Deve haver grana a correr.

    1. Fernando Castro

      A imbecilidade é irrecuperável. A ignorância sim, mas no seu caso impossível com um crânio calcificado.

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