Israel: “De alguma forma, este conflito era esperado”, diz Helena Ferro de Gouveia

Helena Ferro de Gouveia

A tensão na Faixa de Gaza continua a aumentar após o ataque do grupo extremista islâmico Hamas realizado a Israel no passado sábado, 07 de outubro.

O e-Global abordou este tema com Helena Ferro de Gouveia, analista de assuntos internacionais, comentadora televisiva e ex-administradora da Lusa e da Global Media.

e-Global: Como analisa o conflito que está a decorrer em Israel, após o ataque do Hamas no sábado (07 de outubro)?

Helena Ferro de Gouveia: De alguma forma, este conflito era esperado, porque desde 2018 nós temos vindo a assistir a alguma intensificação nas tensões… Este conflito, de facto, é muito complexo.

Agora nós tivemos uma opressão militar do Hamas inesperada, que causou uma pesada factura em termos de mortes de civis, chacinados, que é esse o termo, pelo Hamas, o que naturalmente não pode ficar sem resposta de Israel.

“(…) o Hamas aproveitou o momento em que Israel estava preocupado consigo próprio.”

Israel vivia e vive um momento de grande tensão interna. Todos nós nos lembramos das centenas de milhares de pessoas na rua a protestarem contra este Governo de Benjamin Netanyahu [primeiro-ministro israelense], que está alinhado à extrema-direita e tem partidos religiosos no poder. E o Hamas aproveitou o momento em que Israel estava preocupado consigo próprio.

Israel não tem uma Constituição, mas tem um Supremo Tribunal, que é o que funciona como garante da Democracia. E havia aqui uma tentativa, por parte do Governo ligado à extrema-direita, de acabar com o poder de escrutínio do Supremo Tribunal, o que levou centenas de milhares de cidadãos às ruas, entre os quais muitos reservistas israelitas, muitos militares, muitos pilotos das Forças Armadas,… contra esta medida que ameaça a Democracia em Israel. E no momento em que Israel estava muito voltado para os seus problemas internos, e com esta contestação que já está a ter reflexos na economia do país, o Hamas aproveitou este factor.

Disse em televisão que “o Hamas sozinho não tinha a capacidade de pôr de pé um ataque com estes recursos”. Pode desenvolver esse argumento nesta entrevista?

O Hamas realizou uma operação militar complexa, por ar, por mar e por terra. E conseguiu quebrar a segurança de uma das zonas mais bem vigiadas do país, que é a cerca que fecha a Faixa de Gaza. Conseguiu trapacear os serviços de inteligência secreta, de informação, ao reunir informação e perceber como é que aquilo funcionava. E até ter sido confrontado pela primeira vez, passaram-se cinco horas, ou seja, ganhou uma vantagem competitiva de cinco horas.

“Isto só é possível sendo muito bem planeado, muito bem pensado, com informações que foram recolhidas ao longo do tempo.”

É muito difícil para um grupo terrorista, numa zona pequena do ponto de vista geográfico como a Faixa de Gaza, e apesar de o Hamas possuir um arsenal muito considerável – sobretudo rockets de fabrico próprio, ou iranianos, ou sírios –, a operação foi complexa. O grupo conseguiu quebrar a tal cerca de Gaza, conseguiu infiltrar-se no território israelita, conseguiu fazê-lo por terra através do uso de motas e viaturas, conseguiu fazê-lo pelo ar usando parapentes, e conseguiram por mar. Ou seja, conseguiram iludir a máquina de vigilância israelita. Isto só é possível sendo muito bem planeado, muito bem pensado, com informações que foram recolhidas ao longo do tempo.

“O Irão é um dos grandes financiadores deste grupo terrorista, juntamente com o Catar (…)”

Houve aqui uma coordenação, porque uma das primeiras ações que fizeram foi cortar as comunicações ao exército israelita. Isto indica um nível de sofisticação na operação que dificilmente teria sido feito se não houvesse aqui a implicação de outras forças, ou de outros países. O Irão é um dos grandes financiadores deste grupo terrorista, juntamente com o Catar, e que obviamente se congratulou pelos ataques em Israel. 

Algumas pessoas têm questionado o facto de a Mossad (agência de inteligência nacional de Israel) ter deixado que o ataque do Hamas acontecesse. Qual a sua opinião sobre este lapso?

Israel não tem só a Mossad. Tem três serviços de inteligência, que são a Shin Bet, dos serviços internos, tem a Mossad, dos serviços externos, e tem os serviços militares. Existem três instâncias que trabalham aquilo que é a informação e a análise de informação.

“(…) os serviços de inteligência também falham.”

O serviço de inteligência isrealita é dos mais sofisticados, dos mais bem treinados, dos mais bem preparados do mundo. Em relação a isso não há muitas dúvidas. Mas os serviços de inteligência também falham. Falharam em 1973 [ano da Guerra do Yom Kippur, também conhecida como Guerra Árabe-Israelense], e os paralelismos são evidentes, porque havia uma informação também em 1973 do agente que eles tinham no Egipto e que depois as lideranças, na altura em Telavive, recusaram a aceitar.

Aqui, aparentemente, também havia uma informação da parte dos serviços secretos egípcios e foi interpretada de outra forma pela comunidade de inteligência israelita. Aceitaram que havia uma ameaça, mas pensaram que viria da Cisjordânia e deslocaram três batalhões que estavam colocados em Gaza para a Cisjordânia, deixando Gaza desguarnecida.

“(…) Israel confiou demasiado naquilo que é a tecnologia.”

Do meu ponto de vista, houve uma falha gravíssima, mas que é justificável no sentido em que houve um erro de análise, que pode acontecer a qualquer analista de informação. E, além disso, Israel confiou demasiado naquilo que é a tecnologia. Quando nós olhamos para todo o sistema de vigilância da Faixa de Gaza, é baseado em tecnologia, em sensores, mas esqueceram-se de um ponto muito importante, que é a inteligência humana. Não há tecnologia nenhuma que substitua os velhinhos espiões no terreno, naquilo que se trata de recolher informação.

E a vigilância em torno de Gaza está construída virada para dentro, ou seja, ver o que se passa na Faixa de Gaza. Os israelitas nunca pensaram em ver o que se passa para lá da fronteira. Uma vez passadas as fortificações, houve dificuldade. Há uma falha clara nos serviços de informações, mas duvido que seja intencional, porque isto iria pôr em causa toda a arquitetura de segurança do país, e isso é impensável.

“(…) tenho muitas dúvidas de que isto fosse uma jogada política, uma manipulação política.”

É uma tese válida [a da falha intencional], não digo que não, mas eu tenho muitas reticências, conhecendo a História e a inteligência israelita, conhecendo relativamente bem a forma de pensar dos serviços secretos e um bocadinho a política israelita e a forma como os israelitas olham para a questão da defesa, para a questão da segurança, tenho muitas dúvidas de que isto fosse uma jogada política, uma manipulação política. É um erro, como no 11 de Setembro os norte-americanos, também com uma das máquinas de informação mais sofisticadas do mundo, não foram capazes de prever o 11 de Setembro. Os erros também se cometem.

Este acontecimento pode contribuir para uma escalada para a Terceira Guerra Mundial?

Eu tenho muita cautela em falar numa Terceira Guerra Mundial e com alarmismos. Estamos num momento dramático, este conflito tem potencial para desestabilizar toda aquela zona do Médio Oriente, que já assenta num conjunto de desequilíbrios fáceis.

“É um perigo, sem dúvida, mas não vejo a questão da Terceira Guerra Mundial como um cenário muito possível.”

É mais um foco de tensão sobretudo para os norte-americanos, no sentido em que estavam a apoiar a Ucrânia, estavam preocupados com o que se passa na zona do Indo-Pacífico, sobretudo com a ameaça chinesa, com a crescente militarização chinesa, e neste momento há um conflito na zona do Médio Oriente e com um aliado tradicional como é Israel.

É um perigo, sem dúvida, mas não vejo a questão da Terceira Guerra Mundial como um cenário muito possível. Vejo muitas tensões e vai ter de haver da parte dos líderes muita cabeça fria na avaliação das situações, porque são placas tectónicas ao nível da geopolítica que se estão a deslocar. Vemos um eixo dos autoritarismos, que neste momento é formado pela Rússia, pela China e pelo Irão, que não estão interessados numa ordem mundial baseada no direito internacional, baseada em regras, em normas, que, apesar de todas as suas falhas, continuam a fazer funcionar o nosso mundo. E temos um conjunto de países, o Ocidente alargado, que interessa continuar a defender as democracias liberais. É este confronto de placas tectónicas que estamos a ver agora.

De que forma fica afetada a guerra na Ucrânia, com a ajuda de países do Ocidente – como é o caso dos Estados Unidos da América – agora a ter de ser repartida entre Ucrânia e Israel?

Não me parece que vá ser afectada, porque os Estados Unidos sempre tiveram um orçamento destinado a apoiar Israel. É algo que está pensado, que existe há muito tempo. E foram muito claros naquilo que é o apoio à Ucrânia, porque esse apoio vai muito para além de ajudar um país, e sim com defender aquela que é a nossa ordem mundial, baseada no direito internacional, em tudo aquilo que nós conhecemos e que saiu do pós-guerra mundial.

A influência na Ucrânia não me parece que vá existir, mas é mais um fator de desestabilização.

A Rússia não sairá beneficiada com o que se está a passar?

A Rússia está a ser beneficiada com isto, desde logo com a subida do preço do petróleo, porque é um país exportador de petróleo. Subindo o petróleo, é um benefício económico. E depois há aqui alguma distração, alguma preocupação, da parte dos Estados Unidos e do Ocidente, com a situação que se passa em Israel.

Na Europa este conflito vai ter, e já está a ter, reflexo nas ruas europeias. Nós já vimos a quantidade de manifestações que houve pró-palestinianas, tendo algumas decorrido de uma forma pacífica, mas outras de uma forma bastante mais violenta. Há um potencial de este conflito ser transferido para as ruas europeias.

“(…) a Federação Russa tem contribuído há muito tempo para a desestabilização do Ocidente (…)”

E temos o potencial de este conflito alimentar uma escalada, que já estamos a ver, também de movimentos terroristas e de extrema-direita, porque a questão da emigração, e da emigração islâmica, é um problema que existe na Europa. E a Federação Russa tem contribuído há muito tempo para a desestabilização do Ocidente, quer seja através do financiamento a partidos de extrema-direita, de extrema-esquerda, e a movimentos negacionistas, como o QAnon.

O que esperar do impacto do conflito em Israel numa escala económica global? Na segunda-feira, 09 de outubro, o preço do petróleo já subiu mais de 4%, de acordo com a “Reuters”…

Tenho a certeza que este conflito vai provocar, e já está a provocar, um choque energético, e levar a um novo aumento de matérias-primas como o petróleo e o crude. E isso vai ter depois impacto nas economias que já estão afetadas pela Covid, e posteriormente pela guerra na Ucrânia.

E, mais concretamente, em Portugal?

Em Portugal terá impacto, como terá impacto em todos os países europeus. Portugal encontra-se num conjunto de alianças, e aquilo que afeta a Europa, afeta também Portugal. Seremos afetados com o eventual choque energético que houver e depois é continuar a monitorar a situação e vai depender da evolução do conflito.

Considera que este conflito vai ser longo?

Tudo indica que o conflito vai ser longo e sangrento. Estamos a falar sempre no campo das possibilidades, com base nos dados que temos. O conflito será muito sangrento, disso não tenho nenhuma dúvida, infelizmente. Vamos assistir a um número elevado de vítimas, o que é sempre lamentável. E poderá ser longo, porque a questão do Hamas não é uma questão que se resolva de um momento para o outro.

“Estamos à beira do precipício. Agora a questão é se vai ser dado o passo para a frente (…)”

E depois vamos ver como é que os outros atores se comportam aqui, qual vai ser o comportamento do Irão… que neste momento tem havido muita cautela, até do próprio Irão, que diz não ter nada a ver com o planeamento desta ação. E os Estados Unidos querem evitar, a todo o custo, uma guerra com o Irão. Temos uma série de fatores, mas há um risco de alastramento, um conjunto de cenários que podemos ter sobre a mesa e que terão impactos globais…

Estamos à beira do precipício. Agora a questão é se vai ser dado o passo para a frente, se vamos ser empurrados para a frente ou não.

Cátia Tocha

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