“Olha, foi sem querer! Mas, às vezes, as melhores histórias começam assim”, responde Andreia Monteiro, portuguesa de 42 anos de idade, residente em Beirute, à pergunta “Como veio parar ao Líbano?”, questão inevitável quando damos de caras com compatriotas sediados nesta terra do Médio Oriente.
Decidimos ter o nosso rendez-vous no Urbanista, bar em Gemmayzeh, uma rua animada no coração de Beirute, que, apesar da instabilidade atual na região e da guerra com Israel, continua com os estabelecimentos comerciais repletos de clientes.
“Em Portugal, eu tinha uma empresa de tradução que criei, com alguns colegas, em 2009. Naquela altura, apanhámos com a famosa crise financeira que acabou por descambar. Cheguei a um momento em que que tive de decidir se ia continuar com aquela vidinha em que se calhar amanhã não teria dinheiro para pagar casa ou comprar comida ou se me fazia à vida, e foi nessa altura que surgiu a oportunidade de ir trabalhar para o BNP. Foi excelente durante algum tempo, mas cheguei a um ponto em que, por motivos pessoais, decidi tirar um ano sabático. Estava a um mês do regressar ao trabalho quando, curiosamente, vi uma oferta de emprego num grupo de Tradução no Facebook. O posto seria no Líbano, o que me fez pensar ‘Então, o que é que eu sei sobre aquele país?'”
‘Vender’ a ideia de uma mudança para o Líbano
Andreia sorri e anima-se ao relembrar aquele momento de introspeção. “O que é que de facto sabemos sobre o Líbano? Não sabemos nada, não é? Ou melhor, sabemos aquelas coisas que vemos em Portugal e que são sempre más. Sabemos das guerras, e eu até tinha uma noção vaga sobre a Guerra Civil, e pouco mais. Portanto, tinha de investigar sobre o país antes de ‘vender’ a ideia à minha família. Daquilo que tinha lido, dava para entender que Beirute já não era a “Paris do Médio Oriente” mas que, ainda assim, era um local de emigração praticável. Falei com o Rui, o meu marido e com quem partilho a vida há mais de 20 anos, que ficou muito de pé atrás relativamente a esta ideia, por causa do medo. Mas eu consegui convencê-lo, depois de lhe mostrar as minhas pesquisas sobre o Líbano.”
Beirute, as primeiras impressões
Um mês depois de uma entrevista de trabalho bem-sucedida, Andreia mudou-se então de armas e bagagens para a terra dos Cedros. Veio sozinha e, meses depois, foi buscar a gata Misha, a sua única companheira nos primeiros tempos. O Rui esperava juntar-se à aventura mais tarde, trazendo consigo a Luna, cadela bull terrier. Mas a COVID entretanto meteu-se pelo meio. “Mas já lá vamos”, indica Andreia.
“Eu quando vim não tinha expectativas. Vinha com um contrato de trabalho de um ano. Foi a primeira vez que tinha emigrado. Aliás, só tinha viajado por dois países, Espanha e Bélgica. E quando cheguei a Beirute, fiquei logo chocada com as temperaturas. Saí do avião e estavam 30 graus, com uma humidade brutal. Foi uma sensação de não conseguir respirar. Era agosto de 2019. Calor insuportável!” As primeiras impressões da Andreia incluíram invariavelmente o constante buzinar em Beirute, a forma como se atravessa a rua, “porque ninguém pára para ti nas passadeiras ou respeita os sinais de trânsito”, o que, logo no primeiro mês na capital libanesa, a fez pensar que um dia ainda iria ser morta a tentar atravessar a estrada.
Apesar da adaptação inevitável ao longo do tempo, Andreia salienta que a poluição generalizada, em Beirute, é algo a que ainda não se habituou. “Foi aqui que vi smog pela primeira vez na vida. Olhas para as montanhas e vês uma película espessa que inicialmente pensas que é uma tempestade que se está a formar. A cadela vai comigo à rua e noto que 10 minutos mais tarde está com o pêlo coberto de pontos negros por causa do fumo dos geradores. Aliás, não é só a poluição atmosférica. Os geradores produzem barulho constante, 24 horas por dia. Ter a consciência de que esta poluição nos mata aos poucos é bastante difícil.”
Mas Andreia teimou em ficar. “Senti que era a minha responsabilidade forçar a estadia, pelo menos durante um ano.”
Uma Revolução à Porta
Cerca de dois meses após a chegada, dá-se a famosa Revolução de 17 de outubro, primeiro em Tripoli, no norte, e, logo depois, em Beirute. Andreia estava, precisamente, hospedada no epicentro das manifestações massivas que ocorreram nesse período.
“Sabes que eu nem precisei de ir aos protestos porque eles passavam aqui à porta de casa. Aliás, aquilo que eu fazia naquela altura era fechar as janelas porque o gás lacrimogéneo entrava pela casa adentro. As pessoas normalmente reuniam-se na Praça dos Mártires e, pouco depois, as autoridades começavam a disparar gás lacrimogéneo e canhões de água para dispersar os manifestantes. Mas foi o gás que mais me impactou. Eu nunca tinha passado por algo assim. Quando inalamos aquilo, a cabeça parece que vai explodir, não consegues respirar. Sentes que vais morrer ali.”
A Revolução representou uma fase de esperança para o povo libanês de ver mudanças fundamentais no status quo político e respetiva corrupção, e Andreia relembra este sentimento coletivo. “As pessoas estavam convencidas que a Revolução ia ser uma espécie de Primavera Libanesa e que, finalmente, o país iria melhorar, mas este movimento acabou por redundar em nada…”, lamenta Andreia.
A Revolução prosseguiu nos meses seguintes, de forma imprevisível, e Andreia ainda pensou que poderia passar por uma guerra civil, dada a intensidade e alguma violência dos protestos.
Confinamento e crise económica em terras libanesas
Apesar do período conturbado da Revolução, o Líbano juntou-se ao resto do mundo na realidade da pandemia e dos confinamentos forçados. “Durante os primeiros dois meses, não vi ninguém a não ser os moços da Toters (empresa de entrega de refeições ao domicílio) quando me iam entregar comida a casa. Este isolamento impactou a minha vida social num país estrangeiro, já que os libaneses não estavam muito disponíveis para iniciar laços de amizade em circunstâncias destas. Estava sozinha,” confidencia.Mas não foi só a Revolução e a pandemia que marcaram os primeiros tempos da Andreia, no Líbano. A crise financeira e, em particular, a queda do valor da libra libanesa, foi um fenómeno insólito com o qual a portuguesa teve de aprender a lidar. “Os preços mudavam todos os dias. Nunca sabíamos o preço real de cada produto e havia escassez de dólares. Ainda me lembro da primeira vez que fui ao mercado negro. Eu estava sem dinheiro, e não havia casas de câmbio abertas. Então foi um taxista que me levou a uma loja de telemóveis, no sul de Beirute, onde faziam o câmbio à revelia das autoridades. Quando contei à minha família, em Portugal, eles pensaram logo que mercado negro significava um meio perigoso. Mas correu tudo bem. Esta realidade está totalmente normalizada aqui no Líbano,” conta.
O dia da “Grande Explosão”
Ainda durante a pandemia, Andreia passou por um dos momentos mais traumatizantes da vida. Era um fim de tarde de calor sufocante de agosto, em Beirute, e emigrante portuguesa encontrava-se em casa.
De repente, deu-se uma explosão por perto. “Inicialmente não me apercebi de nada. Nesta cidade, há sempre qualquer coisa a estalar, portanto já estamos habituados a estrondos e ruídos súbitos. E, quando a segunda explosão ocorreu, nem sequer ouvi nada, porque o som só terá chegado depois da onda, o meu corpo foi projetado e voei contra uma parede. Fiquei inconsciente. Quando dei por mim, ouvi vários alarmes de incêndio, vi o pó a encher o ar. Ainda pensei que ia morrer sufocada. Depois, apercebi-me que havia sangue por todo o lado e que o meu maxilar superior estava partido em três partes, e uma delas estava dentro da minha boca,” descreve Andreia.
“Tive a sorte de ter sido encontrada por um casal libanês que me levou a um hospital (um dos poucos que ainda estava operacional em Beirute, já que vários centros hospitalares tinham sido destruídos pela explosão que aconteceu no Porto de Beirute). Tinha levado comigo a Misha e a minha carteira. Só dias depois reparei que a casa tinha sido assaltada naqueles primeiros dias caóticos em que as nossas residências estavam mais expostas por causa dos danos da explosão,” acrescenta.
Resiliência involuntária
Andreia ainda pensou nessa altura sair do Líbano, mas as cirurgias e tratamentos dentários constantes acabaram por forçá-la a permanecer. “As cirurgias no dentista foram brutais. Fizeram-me enxerto ósseo porque não tinha apenas perdido gengiva mas também osso. Foi uma experiência bastante traumatizante”, relembra Andreia.
Agora retida por motivos médicos, Andreia foi-se resignando à ideia de se deixar ficar pelo Líbano. “E quanto mais o tempo passa, mais nos vamos curando. E a vida vai voltando ao normal.”
Esta adaptação ao ‘normal’, dentro de circunstâncias tão imprevisíveis e muitas vezes voláteis, característica muito libanesa, frequentemente apelidada de ‘resiliência’, acabou por ser adotada pela Andreia. Contudo, o termo ‘resiliência’ é, de certa forma, rejeitado pela portuguesa. “Eu percebo porque é que as pessoas não gostam do termo. Basicamente, somos todos iguais. Todos queremos o mesmo e os libaneses não são diferentes. Eles querem ter uma vida normal. Portanto, esta ideia estrangeira que os libaneses são resilientes não está correta.”
O adeus trágico a uma amiga
Ainda a recuperar de tantos eventos dramáticos, Andreia encontrou-se noutra situação traumatizante. “Foi uma daquelas coisas estúpidas. Tivemos um senhor a colocar uma bilha de gás lá em casa e, 5 minutos depois, tínhamos uma coluna de chamas. Ainda tentámos apagar o fogo mas quanto mais tempo passava, mais gás saía da bilha. Pensámos que ia tudo rebentar, então, só tivemos discernimento para pegar na cadela, que entretanto estava a tentar apagar as chamas (todos os cães são bombeiros) e evacuar. Foi só quando chegámos lá abaixo, à entrada do prédio, que nos apercebemos que tínhamos deixado a gata Misha no quarto. Fomos socorridos pelos bombeiros que nos informaram que a Misha tinha falecido. Tive um ataque de pânico e não consegui olhar para o corpo dela. Foi a minha companheira durante quase 9 anos e o meu grande suporte psicológico, especialmente depois da explosão do porto.
A Mona Lisa como terapia
Durante os seus tempos solitários em Beirute, para além da Misha, Andreia teve ainda uma outra companheira: a escrita. “Eu escrevo desde que sei escrever. Quando era miúda, escrevi para o DN Jovem durante uns 5 anos. Mais tarde, voltei-me para a escrita de um blogue, que chamei de “A Mona Lisa Tinha Gases”. Foi uma piada que fiz na altura porque a senhora, naquele retrato, parece que ter comido demasiados feijões. Mas o título pegou e comecei a ter imensas pessoas a visitar o blogue. Até fui entrevistada pela imprensa portuguesa por causa do título e popularidade! Deixava lá textos, diariamente.
O tempo foi passando e fui deixando de escrever. Contudo, voltei à escrita, o que me ajudou imenso a lidar com os acontecimentos aqui no Líbano. Eu escrevia mais ficção, mas aqui a realidade é mais estranha do que a ficção. Tudo aquilo que imaginamos que pode acontecer acaba por nos suceder quando cá estamos. E, atenção, nem tudo é mau. Há coisas muito boas. O meu valor profissional é muito mais valorizado aqui do que em Portugal. Aqui também temos padarias abertas a toda a hora. É bastante conveniente,” relata.
Defender o Líbano
Como se explica que uma bomba rebenta nos arredores da cidade onde se vive? “Isto não se explica”, responde a portuguesa. “Só lhes peço que confiem em mim, que cá vivo. Mais difícil do que assegurar a família, é convencer os amigos que devo continuar cá. Os amigos são os que mais me põe pressão para sair daqui. E desde que a guerra começou, em outubro do ano passado, até o meu marido me disse que a situação poderia escalar rapidamente e que devíamos sair do Líbano. O Rui disse-me que eu não sabia o que era evacuar de um país em guerra, ao que eu respondi “Olha, tu também não!”, conta Andreia, a rir.
A guerra, ainda assim, parece não afetar muito a vida de Andreia, no Líbano. “Sim, o país está em guerra, e tenho noção que a qualquer momento esta pode vir parar à minha porta. Mas a realidade deste país é diferente daquilo que consideramos normal, em Portugal. Estarmos em guerra, neste momento, não afeta a vida em Beirute como seria de esperar. Isto está no plano do surreal, mas eu também já estou no plano do surreal. Eu não vivo nos parâmetros normais da vida europeia. O meu universo já não é o mesmo daquele dos meus pais ou amigos, em Portugal. O meu universo, que também é o do meu marido, é este. Eu não tenho ilusões.”
Para já, e apesar de todos os problemas vividos aqui, Andreia pretende ir ficando pelo Líbano. “Enquanto der, vou ficando. Eu costumo dizer que a minha casa é onde o meu cão dorme. Desde que eu tenha as minhas referências familiares por perto, a vida vai correndo naturalmente, dentro dos possíveis. Na realidade, a única coisa que me faz sofrer aqui é não haver pastéis de nata. Isso é inaceitável!”, ironiza, por fim, a portuguesa ‘retida’ em Beirute.
João Sousa