Numa entrevista ao e-Global, Domingos da Cruz “Maninho”, jornalista, jurista e docente angolano, um dos 17 activistas angolanos detido em 2015, falou sobre o relatório que realizou sobre o garimpo e o trabalho infantil em Angola, lançado publicamente no dia 1 de junho, dia mundial da criança.
O relatório “Eu Vivo das Pedras – Análise da situação de crianças garimpeiras à luz do Direito ao Desenvolvimento” tem por objectivo retratar uma situação que não tem sido alvo de pesquisa, havendo um “desconhecimento do problema na esfera pública e a necessidade urgente de compreender o problema”, conforme refere o activista, docente e jornalista no relatório.
Domingos da Cruz pretende “dar a conhecer a situação das crianças que vivem do garimpo (extracção) de rochas à luz do Direito ao Desenvolvimento e aspectos correlativos sobre o Direito Internacional dos Direitos Humanos”.
Nesse sentido, o activista, jornalista e docente angolano analisou “o fenómeno [das] crianças que vivem da extracção de burgau, areia no solo e no rio, como é o caso do que sucede no Namibe, no Bengo, na Huila, no Huambo (rios Lufefena e Kunhongamua) e Benguela (rio Catumbela), onde crianças passam todo o dia a trabalhar no rio para extrair areia de boa qualidade para construção civil”, conforme menciona no relatório.
Como o Estado angolano olha para a situação do trabalho infantil
e-Global: Quando escreve no relatório que é “imperioso que o Estado crie um rendimento mínimo para as famílias e crianças que se encontram abaixo da linha da miséria”, acha que o regime angolano, agora liderado por João Lourenço, tem algum interesse em promover uma política social desta natureza?
Domingos da Cruz: Não acredito que João Lourenço e o regime no seu todo terão interesse em implementar uma política social desta natureza. Mas, a falta de vontade do regime não obsta que eu enquanto pesquisador proponha medidas que a minha consciência infere serem boas, e as boas práticas internacionais demonstram os benefícios destas medidas.
e-Global: A situação económica em Angola permite efectivamente a criação de um rendimento mínimo que, como refere, não implica o abandono da escola por parte das crianças que pudessem vir a beneficiar deste apoio?
Domingos da Cruz: Na viagem à França, [João] Lourenço fez-se transportar por um voo alugado – Boeing 787 Dreamliner – no valor de 320 milhões de dólares. Uma aeronave jamais vista no transporte de um chefe de Estado de uma república. Somente celebridades do cinema, futebol ou Xás árabes alugam.
Foi criado um consórcio privado em Angola para a criação de uma nova companhia aérea – Air Express Conection − esta vai adquirir seis aeronaves à empresa Canadiana Bombardier, no valor de 200 milhões de dólares com fundos estatais.
No início deste ano legislativo, o governo angolano comprovou 220 carros, Lexus, modelo ES. Cada carro custou 350 mil dólares. Total: 77000 000 milhões de dólares.
Fico por aqui. E pergunto: Este país não tem capacidade para criar um rendimento mínimo para as crianças? Para Angola o problema não são os recursos. O problema são os políticos, a corrupção e o que constitui prioridade para a nomenclatura.
Ao encontro das crianças garimpeiras em Angola
De forma a retratar a situação do trabalho das crianças no garimpo em Angola, o activista, docente e jornalista angolano deslocou-se ao terreno, acompanhando as crianças durante a “jornada de trabalho”, estando três dias em cada província.
“De acordo com alguns relatos das crianças, tem havido casos de acidentes. Falam em crianças que algumas vezes ficaram soterradas no local de trabalho por causa de desabamento de terra. Fala-se igualmente de que terá acontecido morte de uma criança no Pica, pela mesma razão.
“No caso do Huambo, narraram sobre afogamento. Nada disto foi confirmado com algum elemento probatório, por isso, mantêm-se como meras hipóteses, nas quais não podemos fazer fé. O facto de inúmeras crianças que se dedicam a esta prática de sobrevivência não possuírem documentos de identificação (cédula ou bilhete de identidade) reforça a negação do seu direito ao desenvolvimento que é a soma de direitos singulares negados, como sejam o direito ao registo civil, um direito que é porta para outros direitos fundamentais. Por exemplo, nenhuma pessoa pode ter um passaporte para que possa concretizar o direito de ir e vir no espaço internacional, caso não tenha cédula ou bilhete, documento ponte para o anterior; o acesso a escola, tem como uma das pré-condições, um documento de identificação para a matrícula” (página 40, “Eu vivo das Pedras).
e-Global: No relatório é referido que o trabalho infantil em Angola é uma realidade aceite por quase todos, contudo encontrou algum interlocutor em Angola que esteja interessado em solucionar esta situação precária?
Domingos da Cruz: Até ao momento não vejo interlocutores como eu gostaria. Há pessoas ao nível da sociedade civil com alguma sensibilidade. Disto não passam.
“Caso nº 3
Nome: José Victor.
Idade: 8 anos.
Estuda/ Nível de escolaridade: Não frequenta a escola.
Província de Nascimento: Huambo.
Local de trabalho: Rio Kunhongamua.
Residência: Bairro Belém do Huambo.
Documento de Identidade: Não tem.
Descrição síntese: Segundo informações prestadas pelo Victor, dedica-se à esta actividade para ajudar a mãe. São cinco irmãos órfãos de pai. A mãe é uma das parceiras de actividade à semelhança de alguns meninos e meninas que se fazem acompanhar essencialmente com a mãe.
O início do trabalho começa 7h da manhã no rio Kunhongamua e termina 16/17 horas conforme os limites da força física.
O Victor diz não incomodar-se com o facto de fazer este trabalho na sua idade. Questionado sobre a relação entre o trabalho e a sua saúde, disse: «me faz mal. Entro no rio de manhã cedo. Com esse frio do Huambo. Mano, fico com febre muitas vezes».
À semelhança do que nos foi dado a saber pelo Hilário Caiamba, Victor e sua mãe, Adriana Sessa, confirmam que a escassez de clientes, mantêm o produto durante três semanas ou um mês, para depois saldar um caminhão à 10000 Kwanzas” (página 36-37, “Eu vivo das Pedras”).
e-Global: Como descreve o terreno que realizou? Encontrou obstáculos nas entrevistas que realizou junto das crianças e os outros intervenientes que refere no relatório? Qual o panorama nacional deste fenómeno?
Domingos da Cruz: O acesso às crianças foi fácil. Contei com pessoas singulares e organizações locais para o acesso às zonas de garimpo. Notei que os serviços secretos vigiaram os meus passos.
Como referi [no relatório] só as autoridades responsáveis do Instituto Nacional da Criança (com realce para a Directora Nacional, Nilza Batalha) é que não responderam à minha solicitação. Fui ignorado complementarmente. Era previsível. Já sei que não são sérios!
Em geral fazer pesquisa em Angola é arriscado. Pode perigar a vida do pesquisador, uma vez que a liberdade científica está amordaçada.
O panorama [de crianças dedicadas ao garimpo] é mais vasto. Ultrapassa as províncias onde fiz a pesquisa. Tenho informações confirmadas deste fenómeno no Uíge, Huíla, Malanje, etc. Esta situação das crianças, enquadra-se dentro do quadro global de miséria em que o país vive: miséria moral, económica, política e social.
Mas há outras categorias de trabalho que as crianças fazem e que inviabiliza o seu desenvolvimento como sejam as crianças na actividade de tapa buraco nas estradas interprovinciais; Crianças no mercado informal (venda ambulante e em locais fixos); Crianças prestadoras de serviços (engraxadores, carregadores de mercadorias em armazéns, lojas e praças, lavando a louça); Crianças dedicadas à agricultura familiar e outras exploradas em fazendas.
Olhando para o futuro das crianças garimpeiras em Angola
e-Global: Prevê que haja alterações com o novo regime em Angola, liderado por João Lourenço, ao nível de introdução de legislação e medidas concretas para inverter a situação do trabalho infantil no país?
Domingos da Cruz: À luz da teoria democrática da transição e da ciência política não há novo regime. O regime literalmente [é] o mesmo. Saiu o antigo debicante, mas [está tudo na] mesma.
Angola já tem uma legislação interna vasta e densa. Por outro lado, Angola subscreveu instrumentos internacionais de Direitos Humanos para a protecção da criança. Isto é suficiente. O país só precisa traduzir a lei existente em políticas públicas concretas para que as crianças possam sair da situação abjecta em que se encontram.
Mas, não acredito que [João] Lourenço e seu grupo farão alguma coisa para mudar a realidade.
e-Global:O que foi feito e o que se pode fazer para inverter esta situação?
Domingos da Cruz: Nada foi feito em termos concretos. Com excepção de leis boas sobre as quais referi no relatório. Nada mais houve. Um dos indicadores essenciais para verificar se as crianças são alvo de políticas públicas sérias, é orçamento destinado à infância. Ora vejamos: Em Angola a dotação orçamental para a infância parece não servir de facto este grupo alvo.
Em 2015, no orçamento geral do Estado (OGE), na rubrica destinada a “família e a infância”, foi-lhe contemplado 2.298.585.454,87 Kwanzas ($ 13.785.000), correspondente a 11,68% do valor global atribuído ao ministério da assistência e reinserção social. Deste valor, é subtraído um valor para o Programa de Protecção e Promoção dos Direitos da Criança, correspondente a 0,12%. Em numerário são 23.330.129,00 Kwanzas ($ 139.914). No ano seguinte, não houve progressos em termos de dotação orçamental.
Esta é uma prática comum na formulação do OGE em Angola. Tal facto não sucede somente neste sector. O único onde as cifras sobem consideravelmente todos os anos é a defesa e segurança.
Não tendo havido progresso em 2016, passamos para 2017. Neste ano, para a “família e a infância”, foi reservado 12,33% da cifra reservada ao MINARS, que se traduz em 2644.746.655,00 Kwanzas ($ 15.860.900). Deste valor, foram subtraídos especificamente para a criança 0,82%, que se traduzem em 175.367.085,00 Kwanzas ($ 1.051.700).
Embora os valores sejam insuficientes, tendo em conta os problemas que a infância em Angola atravessa, parece-nos que o orçamento é um problema menor, quando comparado com a ineficácia na aplicação dos programas agendados para beneficiar a criança.
Por outro lado, há a corrupção endémica que afecta e destrói os órgãos públicos, e como consequência, viabiliza a drenagem dos recursos que beneficiariam os cidadãos em geral, em especial a criança. Tudo isto, faz com que as crianças angolanas vivam em condições infra-humanas e são sujeitas a serem alvo das implicações referidas.
As propostas para que saiamos desta situação, coloquei-as nas páginas 69-71 do relatório (relatório disponibilizado pelo autor, em baixo).
Eu Vivo das Pedras – Domingos Da Cruz
Xénia de Carvalho