Brasil: Lula quer financiar expansão de gasoduto na Argentina

Durante encontro oficial com o presidente argentino Alberto Fernández, em Buenos Aires, no dia 23, o presidente do Brasil, Luís Inácio Lula da Silva, afirmou aos jornalistas que o seu governo planea financiar, por meio do Banco Nacional de Desenvolvimento Económico e Social (BNDES), a expansão do gasoduto Néstor Kirchner (NK), na Argentina.

“Se há interesse dos empresários e há interesse do governo e temos um banco de desenvolvimento para isso, vamos criar as condições para o financiamento para ajudar o gasoduto [da Argentina]”, disse Lula.

Com esse investimento, o governo argentino prevê ampliar o escoamento do gás extraído da reserva de combustíveis fósseis de Vaca Muerta, na Patagónia, conectando a província de Neuquén, onde está localizada a maior parte da reserva, com a província de Santa Fé, perto da fronteira com o Brasil. A obra permitiria à Argentina vender mais facilmente o seu gás fóssil ao país vizinho.

“O financiamento do gasoduto pode tornar-se numa vergonha binacional, porque esse empréstimo aprofundaria a dependência de combustíveis fósseis nos dois países, num momento em que precisamos deixar as energias sujas no passado, para salvar milhões de vidas e poupar recursos preciosos”, afirmou Ilan Zugman, ativista climático brasileiro e diretor da 350.org na América Latina.

“Existem espaços muito mais positivos de colaboração entre esses países irmãos, como o desenvolvimento conjunto de energia renovável”, defendeu Lula.

Para Zugman, nenhum dos lados se beneficiaria com essa decisão, que atende muito mais ao lobby de empresas e políticos ligados ao setor de combustíveis fósseis do que ao interesse nacional dos dois países.

“Do lado argentino, a decisão agrava a dependência das energias sujas, além de ampliar os terríveis impactos que a extração de petróleo e gás em Vaca Muerta produz sobre as comunidades vizinhas e o clima global. Do lado brasileiro, revela a primeira grande contradição do novo governo na área da transição energética, num momento em que Lula e a sua equipa precisam mostrar compromisso com a causa climática para construir credibilidade internacional”, analisou o diretor da 350.org.

O dano climático da extração de petróleo e gás na reserva de Vaca Muerta é “gigantesco”, segundo apontou um estudo divulgado em outubro de 2022 pela 350.org e pela consultoria Profundo. Esse levantamento revelou que “se for queimado todo o petróleo e gás contido na Bacia de Neuquén, que tem em Vaca Muerta uma das suas principais jazidas, o volume de CO₂ lançado na atmosfera será equivalente a 11,4% do “orçamento global” até 2050, ou seja, de todo o CO₂ que pode ser emitido, se a humanidade quiser limitar o aquecimento global a 1,5 °C e, assim, evitar os piores cenários da crise climática”.

“Os danos ambientais de Vaca Muerta também incluem vazamentos frequentes de petróleo e gás em áreas de extração, com risco permanente de contaminação de água e solo, além da ampliação da frequência de terremotos em regiões onde vivem milhares de famílias. Comunidades do povo indígena Mapuche e pequenos agricultores estão entre as populações mais afetadas e que se opõem mais fortemente a Vaca Muerta. O apoio do Brasil ao setor fóssil na Argentina mostra-se, portanto, contraditório em relação ao compromisso do governo brasileiro e do próprio presidente Lula com o respeito aos direitos desses grupos”, disseram os responsáveis pelo levantamento.

Ainda de acordo com o documento, “o uso do fracking tem sido desastroso também do ponto de vista económico. A província de Neuquén, centro da exploração de petróleo e gás na Argentina, continua a ser uma das mais pobres e endividadas do país. Nos municípios onde o fracking é extraído, há milhares de famílias sem acesso, inclusive, ao próprio gás obtido na região, que dependem de lenha para aquecer suas casas. Além disso, as operações das empresas em Vaca Muerta dependem, há anos, de um substancial apoio do governo federal”.

“Ao anunciar os supostos benefícios económicos desta decisão, o governo argentino esquece, convenientemente, de mencionar os custos ocultos multibilionários de Vaca Muerta. Só em subsídios às mega petrolíferas foram mais de 1,6 mil milhão de dólares nos últimos anos”, afirmou a ativista argentina e coordenadora de campanhas da 350.org Maria Victoria Emanuelli.

Em relação ao BNDES, o anúncio na segunda-feira passada lança dúvidas para esta entidade sobre a disposição do banco em seguir as melhores práticas ambientais, sociais e de governança, sintetizadas pela sigla ESG. Desde o início do novo governo, executivos do banco têm defendido que a instituição assuma papel de protagonismo no financiamento a projetos de descarbonização da economia, com menções explícitas à transição energética.

“O BNDES está colocando as suas digitais num projeto que é uma bomba climática e que está totalmente desalinhado com o seu discurso de sustentabilidade. Seria muito mais inteligente usar os mesmos recursos para propor linhas de financiamento a energias renováveis nos dois países e se tornar líder no engajamento bilateral nesse setor”, comentou Zugman.

O diretor da 350.org lembra também que o BNDES precisa avançar na formalização de compromissos de desinvestimento em petróleo e gás, assim como fez com o carvão, para bloquear decisões como a de expandir o gasoduto na Argentina. Em 2021, a instituição mostrou que medidas como essa são viáveis, ao anunciar, sob pressão da sociedade civil, que deixaria de financiar térmicas a carvão.

“Retirar o financiamento público aos combustíveis fósseis e redirecioná-lo às energias renováveis é, aliás, uma das seis medidas de aceleração da transição energética propostas em uma carta aberta ao novo governo e divulgadas no mês passado pela 350.org, em conjunto com 15 associações e redes de movimentos socioambientais”, disse Zugman.

A carta menciona também a necessidade da proibição ao fracking no Brasil, evidenciada justamente pelos “graves impactos que essa técnica de extração provoca na região de Vaca Muerta”.

“O governo Bolsonaro abriu as portas para o início do fracking no país, com o projeto Poço Transparente, que estimula empresas a testarem a exploração não-convencional de petróleo e gás no país. Cabe ao governo Lula desfazer esse retrocesso”, frisou esta entidade.

Ígor Lopes

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