Num momento em que o Brasil enfrenta novas conturbações políticas, a Amazónia brasileira, ou Amazónia Legal, começa a ganhar destaque na agenda política nacional. No último dia 28, Hamilton Mourão, vice-presidente do País, discutiu a possível retomada do financiamento do Fundo Amazónia com os embaixadores da Alemanha e da Noruega no Brasil. A conversa serviu para “acalmar os ânimos” entre esse dois países e o Brasil, uma vez que o referido apoio financeiro foi suspenso, há alguns meses, após divergências sobre a composição do fundo gestor do programa e de mensagens críticas dirigidas às duas nações europeias por parte do presidente Jair Bolsonaro.
Durante a conversa, Mourão apresentou um plano para a contenção de ilegalidades e informou a esses diplomatas que o governo brasileiro irá recriar o Comité Orientador do Fundo Amazónia, “que define prioridades de investimentos e fiscaliza a aplicação dos recursos estrangeiros”. Esse Comité, que estava inativo, passará a ser presidido pelo vice-presidente brasileiro, que é já o coordenador do Conselho da Amazónia, cujo principal objetivo é “integrar ações federais na região amazónica, incluindo articulação com estados, municípios e sociedade civil”, com especial atenção, na atualidade, para o trabalho de se “antecipar a eventuais problemas relacionados a queimadas e desmatamento na região”. O governo brasileiro garantiu que irá publicar um decreto a restabelecer o Comité “em breve”. Para já, os governos alemão e norueguês se prontificaram a avaliar a retomada do financiamento.
Toda essa movimentação acontece como uma das formas para se combaterem os dados apresentados em maio pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) do Brasil, que divulgou que “a taxa de desmatamento, entre agosto de 2019 e 14 de maio de 2020, já representa 89% da área desmatada do ano anterior” e que, “nesse período, foram detetados 78.443 focos de queimadas na Amazónia, valor mais elevado que o mesmo período de 2018-2019”. Esses e outros dados mostram que “o desmatamento na Amazónia tem aumentado desde 2012 e tende a continuar”.
A importância do “Fundo Amazónia”
O Fundo Amazónia tem como objetivo “captar doações para investimentos não reembolsáveis em ações de prevenção, monitorização e combate ao desmatamento, e de promoção da conservação e do uso sustentável da Amazónia Legal e também apoia o desenvolvimento de sistemas de monitoração e controlo do desmatamento no restante do Brasil e em outros países tropicais”.
O Fundo, que completou dez anos de existência em 2018, apoia iniciativas diversificadas de proteção ambiental na região amazónica. Segundo os responsáveis pelo projeto, foram realizadas já 1.236 missões de fiscalização ambiental, mais de 190 mil pessoas foram beneficiadas com atividades produtivas sustentáveis, 59 mil indígenas foram diretamente beneficiados e existem mais de 385 pesquisadores e técnicos envolvido nas atividades, entre outras iniciativas.
Ainda de acordo com o governo do Brasil, o Fundo Amazónia possibilitou o “aumento de 6% da taxa de desmatamento na Amazónia Legal em 2018 em relação à taxa de 2009, proporcionou o crescimento da participação do Produto Interno Bruto (PIB) da Amazónia em relação ao PIB brasileiro, entre 2009-2016, aumentou em 14% o volume produzido e em 32% a receita gerada pela cesta de produtos do extrativismo”, entre outros resultados.
Outras medidas, segundo fontes em Brasília, vão ajudar na proteção da Amazónia. Em março, o Ministério do Meio Ambiente (MMA) do Brasil assinou o recebimento de cerca de R$ 500 milhões (cerca de 90 milhões de euros) provenientes do Fundo Verde do Clima, fundo global criado em 2010 pelos 194 países que fazem parte da Convenção‑Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima (UNFCCC) para financiar projetos de combate às mudanças do clima. O montante recebido fez o Brasil ser “o primeiro país a receber o recurso por resultados na redução de desmatamento na Amazónia Legal”. A verba está destinada ao Programa Floresta+, “criado para conservar e recuperar a floresta nativa na Amazónia e implementar a Estratégia Nacional REDD+”.
Proteção ambiental em marcha?
O Brasil é formado por seis biomas de características distintas e a Amazónia é um deles. A Amazónia é o maior bioma do Brasil já que conta com um território de 4,196.943 milhões de km2, segundo dados de 2004, e onde crescem 2.500 espécies de árvores, ou um-terço de toda a madeira tropical do mundo, além de ter 30 mil espécies de plantas, das 100 mil da América do Sul. No meio dessa região, está a bacia amazónica, que é a maior bacia hidrográfica do mundo, pois cobre cerca de seis milhões de km2 e tem 1.100 afluentes. O seu principal rio, o Amazonas, corta a região para desaguar no Oceano Atlântico, lançando ao mar cerca de 175 milhões de litros d’água a cada segundo.
Esses números tornam a região num local de grande atenção internacional. A preservação desse espaço, e da sua fauna e flora, conta com apelos das mais variadas entidades internacionais em termos ambientais. Porém, essa região não atrai apenas os olhos dos amantes da natureza, mas, também, serve como pátio de grandes atividades e intenções comerciais.
A Amazónia conta com a maior reserva de madeira tropical do mundo. Os seus recursos naturais, que, além da madeira, incluem enormes stocks de borracha, castanha, peixe e minérios, representam uma grande fonte de riqueza natural. Essas e outras características fazem com que madeiros e empresas ilegais atuem clandestinamente no local para fazerem queimadas, desmatar e extrair madeira.
Especialistas garantem que “entre as principais causas do desmatamento da Amazónia podem-se destacar a impunidade a crimes ambientais, retrocessos em políticas ambientais, atividade pecuária, estímulo à grilagem de terras públicas (usurpação da terra pública, dando-lhe a aparência de particular) e a retomada de grandes obras”. Essas mesmas fontes explicam que, para a perpetuação da vida nos biomas, é necessário “o estabelecimento de políticas públicas ambientais, a identificação de oportunidades para a conservação, uso sustentável e repartição de benefícios da biodiversidade”.
E é justamente no segmento das políticas públicas que os partidos de oposição ao governo de Bolsonaro se têm centrado. Duras críticas à permissividade do aumento das atividades ilegais na Amazónia são feitas ao presidente brasileiro, que, ainda durante a campanha eleitoral, em 2018, afirmou que, se fosse eleito, a Amazónia seria protegida, mas que algumas áreas poderiam ser utilizadas para fins comerciais como forma de desenvolver a região.
O governo em Brasília defende-se e afirma que está a atuar na luta contra o desmatamento através do Plano de Ação para Prevenção e Controlo do Desmatamento na Amazónia Legal (PPCDAm), criado em 2004, e também através do Projeto de Monitorização do Desmatamento na Amazónia Legal por Satélite (PRODES). Neste último caso, os dados obtidos seriam utilizados “para o estabelecimento de políticas públicas”.
“O desmatamento acarreta diversos problemas ambientais e sociais, como a perda de biodiversidade, o aumento das emissões de gases de efeito estufa e a diminuição de territórios de populações tradicionais”, referiu o MMA.
Outra das ações que, segundo o governo brasileiro, estão a ser realizadas na Amazónia é o “uso planeado e sustentável da terra”, o que “pode minimizar drasticamente a degradação florestal na região provocada pelo aumento de incêndios devido às mudanças climáticas”. Levantamentos do governo brasileiro, aos quais tivemos acesso, referem que “futuras conversões de floresta para usos agropastoris não manejados adequadamente podem causar um aumento de mais de 70% na extensão de áreas com alta probabilidade de fogo”. Dessa forma, as autoridades brasileiras estariam a impedir “a redução da efetividade das áreas protegidas, a pavimentação de novas rodovias e o aumento do desmatamento”.
Trabalho contestado
Mas essas ações parecem ser “insuficientes”. De acordo com a organização não governamental de ambiente Greenpeace Brasil, o país liderado por Bolsonaro apresentou “aumento de alertas de desmatamento em abril”.
“Além da calamidade sanitária que vivemos, por conta da covid-19, os alertas de desmatamento no Brasil apontam para a tendência de um aumento do desmatamento explosivo nos últimos meses na Amazónia. Abril registou 24,2% mais alertas do que o mês anterior. Somente entre janeiro e abril deste ano, o aumento dos alertas de desmatamento é de quase 55,5%, em relação ao mesmo período do último ano. (…) Os alertas de desmatamento dentro de Terras Indígenas aumentaram 59,4% até o dia 23 de abril, o maior índice dos últimos quatro anos, e 172% nas Unidades de Conservação nos primeiros meses deste ano. (…) Não bastasse a ameaça de levar o vírus aos povos indígenas, desmatadores e grileiros estão se sentindo ainda mais impulsionados para cometer os seus crimes. Já estamos observando a volta de grandes desmatamentos, com mais de mil hectares, ocorridos entre janeiro e abril deste ano. (…) Infelizmente, o que podemos esperar para este ano são mais recordes de queimadas e desmatamento”, denunciou Rômulo Batista, da Greenpeace Brasil.
Dados da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) revelam que, até meio do mês de maio, “pelo menos 99 indígenas já haviam falecido e mais de 500 foram contaminados pela covid-19, totalizando 40 povos atingidos”.
Recentemente, pesquisadores do INPE e a pesquisadora Liana Anderson, do Centro Nacional de Monitorização e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) do Brasil, alertaram para o facto de que “o desmatamento na Amazónia e uma possível seca, associada ao aumento de temperatura acima de toda a média histórica do Oceano Atlântico, podem intensificar as queimadas e incêndios florestais nos próximos meses, aumentando a incidência de doenças respiratórias na população”. Esses profissionais reforçaram que esse cenário “poderá ocasionar o colapso do sistema de saúde nos estados amazónicos, agravando-se com a possível sobreposição dos problemas do atendimento das doenças respiratórias e da pandemia da covid-19”.
O Ministério da Saúde do Brasil garante que “tem estado no terreno a monitorizar a saúde da população indígena e a acompanhar os casos de covid-19”.
Mercado impactado
O tema do desmatamento não é o único a preocupar ambientalistas e entidades em relação à Amazónia. As queimadas também fazem com que matas e florestas percam terreno. Há alguns meses, o número de queimadas motivou os empresários internacionais a suspenderem a compra de couro brasileiro, facto que estremeceu a relação entre o mercado brasileiro e os seus importadores.
Em nota, a Confederação Nacional da Indústria (CNI) disse que “repudia a decisão de importadores de suspender a compra de couro brasileiro” e que a entidade considera “injustas e equivocadas as tentativas de se vincular a exportação de produtos industriais brasileiros às queimadas na Amazónia”.
“A Amazónia é um património de fundamental importância para o Brasil, sobretudo pela sua megadiversidade biológica, que abriga 20% do total de espécies de plantas e animais do planeta. Trata-se de uma riqueza potencial para ser desenvolvida e a indústria nacional é uma das principais interessadas no seu uso sustentável”, afirmou o presidente da CNI, Robson Braga de Andrade, que sublinhou, ainda, que “a indústria brasileira está totalmente comprometida com a sustentabilidade ambiental, que vai desde o uso racional de recursos naturais e a redução de resíduos sólidos até o controlo das emissões de gases de efeito estufa”.
Diplomacia “arranhada”
Recorde-se que a imagem da Amazónia suscitou também momentos de tensão diplomática entre Brasil e França, quando Bolsonaro e Emmanuel Macron, presidente francês, trocaram acusações, em 2019, sobre a região. Diante das notícias de incêndio na Amazónia, o presidente francês sugeriu levar o assunto para ser discutido no âmbito da cimeira do G7. Bolsonaro retrucou e questionou as intenções de Macron em querer “salvar” a Amazónia.
Em janeiro deste ano, os incêndios florestais na Austrália e no Brasil tomaram conta das notícias na televisão, não pelo facto do prejuízo ambiental, mas porque Bolsonaro questionou que os media e as autoridades internacionais não estavam a criticar o trabalho do governo australiano, que “deixava arder” milhões de hectares, e apenas sinalizavam, em tom crítico, o território perdido para o fogo na Amazónia.
Em contraponto às declarações de Bolsonaro, a imprensa brasileira avaliou que “o clima seco, o vento e as altas temperaturas elevam os riscos de focos de incêndio na Austrália, que podem começar com faíscas de diversas atividades humanas”, já na Amazônia, as chamas seriam “provocadas pelo homem para limpar áreas desmatadas e ocupar terras públicas”.