Segunda parte da entrevista com o ativista dos Direitos Humanos de Cabinda José Marcos Mavungo.
E-GLOBAL – Angola nega a existência de operações militares em Cabinda, enquanto a FLEC tem anunciado várias operações que resultaram em vários mortos. Qual é a perceção da Sociedade Civil cabindesa sobre a situação militar em Cabinda?
José Marcos Mavungo: Sim, há um esforço propagandístico da imprensa estatal, dos homens do regime que negam a existência do conflito em Cabinda. Na sequência do Memorando de Entendimento, o Governo adotou a estratégia de fingir não haver guerra em Cabinda, para não desacreditar o acordo assinado com Bento Bembe a 1 de agosto de 2016. Entretanto, a inquietação é tão grande em Cabinda, quando se sabe que os combates fazem rasura no interior, ao mesmo tempo que cidadãos indefessos são vítimas de horrores e perversões comportamentais de elementos das Forças Armadas Angolanas (FAA) e da Polícia Nacional (PN). Portanto, a negação do conflito em Cabinda é uma “hipocrisia sarcástica”, uma tentativa de se fingir de inocente, de se esconder perante os seus próprios atos de imoralidade.
Hoje, temos em Cabinda uma política fascizante e militarista, apostada a acabar com o conflito ainda reinante neste território pela repressão e via armada. Trata-se de uma política confusa e de vistas curtas, contribuindo assim para atiçar a guerra, que tem destruído Cabinda. O atual Estado de Sítio vivido pela população de Cabinda, a desorganização ocasionada por esta situação impede o funcionamento normal das instituições da governação e da administração da Justiça e a distribuição justa dos recursos naturais. Contra factos não há argumentos, diz o ditado. Diante da atual situação vigente em Cabinda, a SC acha que o Governo não pode continuar a tapar o sol com a peneira. “Opus justitiae pax” – “A paz é obra de justiça” (Is 32, 17). Urge, pois, uma vontade política séria para se resolver a Questão de Cabinda, isto é, fazer Justiça ao povo de Cabinda.
Quais são as propostas da Sociedade Civil para a solução da “questão” de Cabinda?
Antes de mais nada devo sublinhar de que questão de Cabinda é a resultante do desastre da descolonização Portuguesa, que se traduz no atual longo conflito, deixando os habitantes de Cabinda em sofrimento e angústia, sem Dignidade e sem qualquer estatuto ontológico-jurídico que os defenda. Mas, o povo de Cabinda é o seu próprio destino, é projeto irremediável de uma certa existência no contexto das nações, no qual todos os povos estão convidados a participar no grande encontro de dar e de receber.
Ora, o poder e a resolução de conflitos já não estão no cano das armas, mas sim no diálogo, que, de resto, deve ser inclusiva. Assim sendo, a SCC pensa ser necessário corrigir a falsa normalidade dos Acordos de alvor, que no seu art° 3 estabelece Cabinda ser parte integrante e inalienável do território angolano. Nesta perspetiva, a Questão de Cabinda deve deixar de ser um tabu para Angola, mas sim levantar um debate franco e aberto em torno das suas raízes. Além disso, é urgente que as forças políticas se encontram e façam prova de maturidade e de Amor à Justiça e Dignidade para o povo de Cabinda. E a participação da SCC neste processo é uma necessidade imperiosa.
O diálogo sobre Cabinda supõe a escuta das aspirações legítimas do povo de Cabinda, o respeito do seu Estatuto Ontológico-jurídico, a fidelidade aos engajamentos e aos valores humanos da Declaração Universal dos Direitos Humanos e dos Povos. Nesta perspetiva, as partes devem partir dos problemas subjacentes à gestão da especificidade de Cabinda como povo, dos desafios enfrentados por Angola neste momento, e ir ao encontro da Justiça e da Dignidade para os Cabindas.
Que balanço e resultados práticos pode realçar do dito Memorando de Entendimento assinado por António Bento Bembe?
Antes de mais nada, devo dizer que as forças afetas a Bento Bembe procuraram simplesmente a paz que os acomodasse, não quiseram suportar os custos de um compromisso claro e firme em defesa da justiça e do desenvolvimento para Cabinda. Assim, depois de dez anos e seis meses, devo dizer que o balanço do Memorando de Entendimento dececiona. Nota-se uma violação flagrante do espírito deste acordo – nenhuma clausula é respeitada, exceto aquela relacionada com a incorporação das forças afetas a Bento Bembe no Governo, nas forças Armadas Angolanas (FAA), na Polícia Nacional (PN) e noutras instituições do Estado Angolano, o que reforça a posição da classe política dominante ao conceder-lhe a possibilidade de perpetuar o status quo. Além disso, quando se olha para trás, e se considera os homens que deram expressão a esta ideia de Memorando de Entendimento, tem-se o sentimento de que tiveram uma iniciativa marcada por intenções absurdas: o povo de Cabinda continua a viver sob o espectro da violência e das leis de censura, repressão e perseguições republicanas, detenções arbitrárias e julgamentos injustos, corrupção e restrições para com os autóctones, negação da sua identidade e do seu direito como povo, como nos tempos passados de partido único em que as forças de Bento Bembe estavam no maquis. E um dos grandes problemas das populações de Cabinda é sobretudo marcado pelo absurdo da governação, que se traduz em paradoxo: o incremento da pobreza e da poluição ambiental, do sofrimento num território com enormes recursos naturais.
A Comunidade Internacional e o Estado português permanecem num silêncio oficial sobre a situação em Cabinda. Como explica este silêncio? Que medidas a Sociedade Civil cabindesa pretende adotar para quebrar este silêncio?
De facto, há gritos de mortes, de desaparecidos, de repressão, de intimidações psicológicas, de prisões arbitrárias e de dor em Cabinda que ninguém parece escutar, tão encadeado está o mundo pelos holofotes do interesse e dos média. O que é surpreendente é a atitude do Governo português que, a propósito das questões colocadas sobre Cabinda, vem a público para mostrar-se aliado do regime «en place», interesses «petrófobos» obrigam.
Sabemos a dificuldade de mudar o atual figurino sociopolítico em Cabinda, dificuldades essas ocasionadas pela ditadura exercida pelos interesses económicos de terceiros poderosos, que afogam o povo de Cabinda. Porém, achamos que o silêncio em Cabinda será rompido se antes de mais nada fizermos escolhas acertadas, arrancar as populações, em particular os jovens da inércia, instituir uma rede de informação eficiente, recorrer a métodos coerentes de resistência pacífica, e colocarmo-nos à frente das realizações que podem conduzir-nos a mudanças radicais do atual figurino sociopolítico. A luta assim entendida daria espaço a um combate autêntico de ideias e ações suscetíveis de construir uma sociedade cabindense renovada e resolver os complexos e graves problemas que a abalam, sendo entre os mais urgentes a vencer as diversas formas de corrupção, desinformação e totalitarismo que instituíram uma governação perversa e impedem a paz em Cabinda.
Qual é a situação atual do respeito dos Direitos Humanos em Cabinda? Pode dar exemplos recentes de violações dos Direitos Humanos em Cabinda.
Vive-se neste momento em Cabinda um ambiente intelectual de grande ceticismo, ou, pelo menos, de deceções. Os governantes perderam a noção da boa governação, da Justiça e dos direitos que deveriam proteger as pessoas. O Estado de Direito ficou por se cumprir, quando diariamente nos deparamos com os atropelos ao direito à vida e às liberdades fundamentais, as detenções arbitrárias, julgamentos injustos, impedimentos à imprensa independente em visitar Cabinda, perseguições republicanas a homens de boa vontade. Ademais, o território de Cabinda enfrenta desafios lançados por questões éticas em termos de governação e por questões de grave exclusão social.
Nestes últimos três anos, a morgue do Hospital Central de Cabinda (HCC) anda superlotada, em consequência da alta mortalidade ocasionada pela crescente deterioração do nível de vida e do meio ambiente. Além disso, muitos cidadãos morrem pelas mãos de elementos dos seus próprios órgãos de segurança e de ordem pública. Por exemplo, no dia 23 de janeiro de 2017, foram encontrados quatro corpos de indivíduos do sexo masculino não identificados à beira da estrada, no local chamado “Três Curvas” da serra do Muabi. Tendo notado a indignação das populações da área, as autoridades civis e militares, ordenaram os serviços de administração Municipal a sua exumação imediata. Assim, os corpos foram lançados numa vala comum. E não houve qualquer diligência no sentido de instaurar uma investigação forense do assassinato destes quatro pacatos cidadãos, cuja voz do seu sangue clama por justiça da terra a Deus.
Tudo isto se tem dado sem que pudesse dizer do ponto de vista do sistema jurídico vigente, que estes atropelos contrariavam a Constituição em vigor em Angola e a Declaração Universal dos Direitos Humanos e dos povos. o sistema judiciário é muito débil, sendo refém de instintos políticos e militares. Portanto, vive-se em Cabinda uma pejada de injustiças e crimes inauditos, nos quais estão envolvidos até elementos das instituições da ordem pública e da administração da justiça.