ativista moçambicana Quitéria Guirengane

Entrevista: Ativista Quitéria Guirengane diz que “há uma conexão clara entre o terrorismo em Cabo Delgado e as dívidas ilegais”

A ativista moçambicana e Presidente da Rede de Mulheres Jovens Líderes de Moçambique, Quitéria Guirengane, conversou com o e-Global sobre a situação vivida na província de Cabo Delgado, alvo constante de ataques de grupos armados desde outubro de 2017.  

Outro tema abordado na entrevista é o facto de o Governo moçambicano estar, de acordo com Guirengane, a aproveitar-se politicamente da pandemia da Cxv1d-19, através do uso de medidas de prevenção desta doença para restringir liberdades como o direito à manifestação. 

e-Global: Pode falar um pouco sobre o seu percurso enquanto ativista e Presidente da Rede de Mulheres Jovens Líderes de Moçambique? 

Quitéria Guirengane: Eu sou uma jovem ativista política e social, focada para os direitos humanos. Atualmente, eu sou Presidente da Rede de Mulheres Jovens Líderes de Moçambique e também comentadora do “Opinião no Feminino”, que é um programa televisivo de debate de assuntos da sociedade. Simultaneamente, lançámos recentemente o “Observatório das Mulheres”, que é uma plataforma que junta uma série de organizações da sociedade civil, que lutam pelos direitos humanos das mulheres. 

Tenho um histórico de ativismo político e social, com uma forte passagem pelo Parlamento Juvenil de Moçambique, também enquanto gestora de programas, do movimento político Nova Democracia, enquanto mandatária eleitoral nacional, entre outros movimentos de ativismo e de participação política. 

Com que idade se tornou ativista? O que lhe levou a ter essa vontade? 

Atualmente, tenho 31 anos. Comecei o meu engajamento cívico desde tenra idade, mas de forma mais ativa foi aos 17 anos. Comecei aos 17 anos como Chefe do Departamento de Assuntos Académicos na Universidade Eduardo Mondlane (UEM), através da qual me engajei no associativismo juvenil, na luta pelos direitos da comunidade estudantil. Saí da Associação de Estudantes da UEM em dezembro de 2008. 

(…) tive a oportunidade de ser a primeira jovem africana a discursar no Departamento do Estado Americano, durante o primeiro encontro das jovens líderes africanas com o Presidente Obama (…) 

Faço parte da fundação do Parlamento Juvenil de Moçambique e passo por uma série de funções, entre ser assessora para comunicação, relações exteriores… foi nesta qualidade que tive a oportunidade de ser a primeira jovem africana a discursar no Departamento do Estado Americano, durante o primeiro encontro das jovens líderes africanas com o Presidente Obama, entre uma série de outras participações nacionais, que permitiam também cristalizar as parcerias e o movimento de luta fora de Moçambique com outros movimentos e ativismo tanto a nível continental, como a nível internacional. 

Em 2012 e 2015 dirigi o secretariado da primeira e segunda conferência africana da juventude. Foi nesta conferência que nós juntámos antigos estadistas africanos, entre os quais o antigo Presidente de Moçambique Joaquim Chissano, o antigo Presidente de Cabo Verde Pedro Pires, o antigo Presidente do Burundi Pierre Buyoya… com o intuito de questionar o que estas antigas lideranças têm estado a fazer, efetivamente, para assegurar que não se deixa um legado penoso para a juventude em África. Porque o período em que eu me junto ao Parlamento Juvenil, e que fundámos o Parlamento Juvenil, era um período marcado por uma certa apatia da juventude. 

A juventude era caracterizada como uma maioria silenciosa e apática, mas muito por causa desta camisa de forças em que está submetida, que é uma ideia de que… as elites defendem que os jovens não têm interesse pela política, que não têm interesse pela cidadania, pelo ativismo. Mas, por outro lado, eles não estão prontos, não estão dispostos a ceder que a juventude faça, que a juventude se engaje, que a juventude participe. É como se a juventude tivesse ficado numa eterna lista de espera, em função dos prazeres das elites políticas, quando nós dizemos que a juventude em África, e em Moçambique em particular, não só é maioria demográfica, como também é aquela que é a “carne para canhão” nos conflitos, no terrorismo… como em Cabo Delgado. 

Costumamos dizer que a guerra é um processo em que jovens que não se conhecem, não se odeiam, lutam por orientações de adultos que se conhecem, que se odeiam, mas não lutam. E é esta a reprodução um pouco por todos os lados quando olhamos, por exemplo, para a violência eleitoral em Moçambique, encontramos um rosto maioritariamente de jovens. Quando olhamos para outros contextos, encontramos jovens na sua maioria. Então isto levou um pouco a cristalizar este ativismo, ao nível de todo o meu período de carreira. Foi marcado por este ativismo político porque, apesar de ter feito ao nível de licenciatura Psicologia Social das Organizações, sempre coloquei a psicologia ao serviço da participação política, do engajamento cívico e priorizei sempre uma luta pelos direitos humanos numa perspectiva de inclusão de género. 

Também estive envolvida em colaborações de ativismo através da participação de uma série de campanhas, como a campanha pela libertação dos presos políticos de Gaza, em 2019, o apoio que demos à campanha de libertação dos 15+2 de Angola, as campanhas que fizemos recentemente Mulheres sem Luto, por conta da situação de terrorismo em Cabo Delgado… uma série de ações que fomos desenvolvimento e principalmente mentoria de mulheres e jovens. 

Como é ser ativista em Moçambique? Como é tratada pelas autoridades? 

Nós nascemos com as portas fechadas. Não há mais porta que nos possam fechar em função das nossas opiniões. O que nós estamos a fazer neste momento é abri-las. E corajoso não é aquele que não tem medo, mas aquele que enfrenta o medo. Então o principal legado que nós podemos deixar é lutar para abrirmos as portas para que outros jovens não tenham que percorrer o mesmo percurso penoso que nós temos estado a passar, como perseguição política, intimidação… que caracteriza o contexto de países como o nosso, onde há liberdade de expressão mas não há liberdade por expressão. 

Em Moçambique a liberdade de expressão é “Eu vou deixar-te dizer, mas não respondo pelo que acontecer depois de dizeres”.  

É um pouco deste contexto que leva à militância, ao engajamento, desde a fase da tenra adolescência. E eu costumo dizer que, embora este ativismo visível tenha começado aí, eu já comecei desde a infância, através de movimentos de adolescentes ao nível religioso e de outros espaços de participação. 

Em Moçambique a liberdade de expressão é “Eu vou deixar-te dizer, mas não respondo pelo que acontecer depois de dizeres”. E nesse contexto é um pouco característico do nosso país. E se nas grandes cidades nós falamos de uma meia liberdade, a situação torna-se ainda mais penosa quando saímos das capitais em direção aos distritos. Eu sou uma jovem privilegiada, porque tive acesso a espaços de participação e de decisão muito cedo. E eu sinto que um pouco por causa da exposição política que esta função me concedeu faz com que esteja um pouco mais no radar de defensores de direitos humanos, que têm um pouco mais de atenção. 

No entanto, mesmo assim, a perseguição ocorre de várias formas, de vários meios. E o tipo de intimidação, de contextos como o de Moçambique, passa por diversas formas. Não é só a intimidação direta, mas no acesso a oportunidades. É a intimidação na proibição que a pessoa tem praticamente de cometer erros, é a intimidação dos grupos de choque, que muitas vezes são colocados ao serviço do regime para cada opinião que nós tecermos publicamente, ser censurada numa luta pelo ataque da imagem, da reputação… Não é um debate de ideias. 

Há outros tipos de perseguição, e é preciso referir que nas eleições de 2019 nós passámos por muito. Tivemos um processo legal que tinha uma intenção claramente de destruir. O partido no poder [Frelimo] cometeu uma série de violências, mas mais do que todas as violências que cometeu, e não é uma questão de hierarquia das violências, mas decidiu deter 18 jovens, monitores eleitorais, numa situação em que eu era responsável para tratar das questões legais, das questões de participação daqueles monitores eleitorais… Colocaram-nos numa situação em que não só pelas elevadas taxas que tínhamos que pagar, mas também pelo transtorno, a pressão familiar… por uma série de questões nós tínhamos que responder pela situação daqueles jovens. Nesse processo eleitoral as autoridades tentaram deter-me. É uma tentativa de fazer com que as pessoas reportem o que efetivamente está a acontecer nas eleições, reportem situações de fraude eleitoral. 

O Governo tem-se aproveitado politicamente da pandemia da Cxv1d-19? Como usar as medidas de prevenção para restringir liberdades como o direito à manifestação? 

O espaço cívico está a ser cada vez mais restringido em Moçambique. Há uma tendência de fechamento do espaço cívico, de perseguição de ativistas… Nós vivemos num ambiente de terror, há assassinato constante, tortura e rapto de ativistas políticos, jornalistas desaparecidos… Temos situações de denúncias de colegas ativistas que nos dizem ‘off the record’ [em privado] que tiveram vídeos íntimos seus expostos, captados pelo partido no poder por vias duvidosas, e que neste momento foram ameaçadas que se continuassem a ter opinião crítica em relação a assuntos da sociedade, os seus vídeos vão vazar nas redes sociais. Há muitas formas de intimidação que não nos permitem descansar, e é isso que impede muitas pessoas de falarem mais abertamente. 

Sinto que o Governo está a aproveitar-se bastante das regras de combate à Cxv1d-19. Nos últimos dois anos, em nome da pandemia não se permitiu que as pessoas fossem à rua por nenhum motivo. Todas as tentativas de manifestação lograram em fracasso. Nós temos uma lei de manifestação em Moçambique, a Lei 9/2000/91, alterada e republicada pela Lei 7/2001, que diz efetivamente que para se manifestar não se pede autorização, mas sim comunica-se a manifestação. E este aviso é feito quatro dias úteis antes e as pessoas saem à rua. As autoridades civis ou policiais só podem impedir a manifestação de forma devidamente fundamentada, se houve um motivo específico e claro de segurança ou se vai desvirtuar os princípios normais. 

No entanto, o nosso Conselho Municipal tem estado a desautorizar todas as manifestações. E nós, que fomos percebendo este ambiente de restrição do espaço público, estamos a organizar uma ação de manifestação por conta desta situação da exploração sexual de mulheres em Moçambique, que agendámos para a próxima semana. Nós submetemos o aviso ao Conselho Municipal e neste momento aguardamos que reaja. No entanto, reagindo ou não, a lei pressupõe que, não havendo reação, vamos à rua. 

Uma das escapatórias do município tem sido a pandemia. “Ah não, não podemos permitir aglomerações, não podemos permitir…”. Nós fizemos uma carta inovadora e dissemos que, por conta das restrições da pandemia, a nossa manifestação não vai aglomerar pessoas. Estamos a escolher pontos da idade e, em vez de fazermos uma marcha, vamos fazer uma concentração escolhendo diferentes pontos da cidade, onde vamos alocar alguns companheiros com mensagens efetivas sobre o assunto que queremos partilhar. Este é um teste, porque queremos ver se, mesmo havendo apenas cinco pessoas por ponto, ainda nos vão criar uma desculpa de pandemia… 

Temos que reinventar as formas de protestar, mas temos que ir à rua, temos que manter a cidadania de rua. Porque senão a ditadura vai ser implementada em definitivo, mesmo depois da pandemia acabar. 

O Conselho Municipal não pode restringir a manifestação em nome da pandemia, porque há uma interpretação, uma decisão do Comité de Direitos Humanos das Nações Unidas, de 09 de julho de 2020, se não estou em erro, que diz claramente que nenhum governo pode evocar a pandemia para restringir protestos, para restringir o direito à manifestação. A pandemia não pode ser um argumento para isso e nós temos que, como ativistas também, matar esta cultura do medo e ir à rua. Há uma mentalidade de conformismo das pessoas, que pensam que não devem exercer os seus direitos porque senão vão ser presas, mesmo isso sendo contra a lei. Temos que reinventar as formas de protestar, mas temos que ir à rua, temos que manter a cidadania de rua. Porque senão a ditadura vai ser implementada em definitivo, mesmo depois da pandemia acabar. Nós temos de voltar à rua porque não sabemos quando este cenário irá acabar. 

E quanto às consequências económicas e sociais da pandemia… como tem sido a situação em Moçambique? 

As consequências económicas e sociais são desastrosas. São gravosas. Há poucos minutos eu recebi uma denúncia de mais uma mulher que foi brutalmente espancada pela polícia num mercado em Niassa, alegadamente porque a polícia encontrou-a sem máscara. Quer dizer, não temos um processo de educação de cidadãos para o cumprimento das normas, mas é um impacto desigual. Porque se for aos grandes restaurantes, aos espaços frequentados pelas elites, não há nenhuma regra de prevenção da pandemia imposta. Nos restaurantes estão claramente sem máscaras, as pessoas cumprimentam-se e até apertam mãos muitas vezes. Têm todos os privilégios de uma elite predadora do Estado. 

O Conselho Municipal, em nome da pandemia, institui mais medidas de combate aos pobres do que de combate à pobreza. 

No entanto, à medida que nós atravessamos dos bairros altos para a cidade mais desfavorecida, para os distritos, as localidades… nós vemos uma extrema brutalidade policial. Só de imaginar o número de pessoas que foram presas neste país, quer por não usarem máscara, quer por estarem a comercializar fora das horas permitidas, quer por estarem a vender os produtos que eles não acham adequados, quer por estarem a sair de casa… Algumas pessoas têm os seus negócios encerrados há bastante tempo.  

O Conselho Municipal, em nome da pandemia, institui mais medidas de combate aos pobres do que de combate à pobreza. Por natureza, os nossos mercados são superlotados. Por natureza, os nossos mercados não têm condições de saneamento básico. Mas o município, em vez de primar por medidas para ampliar os espaços de mercado, criar novos mercados, alocar espaço, pura e simplesmente violentou brutalmente todas as mulheres, e homens também, que encontrava e que achava que não deveriam estar nesses espaços. E as pessoas foram enviadas para a rua, foram enviadas para casa sem ter algo para colocar na mesa. 

Nampula, que é a província mais populosa do país, tem vários distritos onde as pessoas estão a comer capim. 

Moçambique sempre teve bolsas de fome, bolsas de insegurança alimentar, mas neste momento a situação está gravosa. Nampula, que é a província mais populosa do país, tem vários distritos onde as pessoas estão a comer capim. Estão a alimentar-se de capim porque não têm nada para colocar na mesa. Enquanto isso, existem projetos como o “Sustenta” que pouco sustentam. São mais projetos de propaganda e marketing do que projetos que estão a colocar comida em cima da mesa das pessoas. 

E depois os dinheiros drenados em nome da Cxv1d-19… 700 milhões de dólares (590 milhões de euros) foram pedidos em nome do povo moçambicano e, no entanto, não estão a beneficiar a maioria. Houve uma medida sobre um valor de Cesta Básica de 3.500 meticais (46 euros), aproximadamente, por família, que iriam ser alocados para apoiar na minimização dos efeitos da pandemia. No entanto, o município escolheu aleatoriamente bairros para dar esse apoio, mesmo um bairro ao lado do outro, e muita gente mencionou a possibilidade de se estarem a usar os mapas eleitorais em função dos bairros que venceram as eleições com o partido no poder, para beneficiar as pessoas que acham que votaram neles e castigar aqueles que acham que não votaram neles. Há muita politização da gestão da pandemia. As pessoas estão a morrer de fome e estamos a dizer às pessoas “fiquem em casa” quando o Estado não tem o mínimo de papel de proteção social de Estado provedor. 

E em relação à situação em Cabo Delgado… esta província tem sido frequentemente atacada desde 2017. Porque é que o Governo ainda não conseguiu resolver a situação? 

O problema de Cabo Delgado é um problema multidimensional, trata-se de um problema com vários fatores, várias causas, vários agentes facilitadores. Nós temos causas internas e causas externas, e há uma série de causas que precisam de ser colocadas na mesa. Extremismo violento, extremismo islâmico, causas de terrorismo, disputas das elites políticas… Há alguma base que nos permite analisar a situação de Cabo Delgado (estudos feitos pela Amnistia Internacional e outras entidades) e ver que o gás natural é apenas um dos fatores na equação. 

Há uma série de teses que colocam a questão do extremismo islâmico, umas como uma capa para esconder muito o que está por detrás e outras como apenas um fator facilitador até da mobilização dos locais, em função das suas convicções religiosas, outras como apenas uma ponta do iceberg. Claramente, há quem coloca esta possibilidade de ter ligações com o ISIS, ter ligações com o Estado Islâmico na Somália, etc. Mas depois temos conflitos locais, entre pessoas, que o Estado não está a conseguir gerir. 

Temos também o problema da exclusão política, económica e social. Os cidadãos locais viveram sempre por cima de rubis, de ouro e alimentaram-se dos seus recursos. Mas, a partir do momento em que o Estado descobriu que há recursos, foi lá e varreu toda a população e agora chama-lhe de ilegal. As pessoas perguntam “Como é que eu sou moçambicano, sou local e eu sou ilegal na minha própria terra? Outros serão seres superiores a nós para lhes ser dada licença para explorarem os recursos, mas os moçambicanos passam pela situação de tortura, por perseguições?”. 

Há uma conexão clara entre o terrorismo em Cabo Delgado e as dívidas ilegais (…) 

Recentemente, o Estado prendeu 300 jovens acusados de garimpo ilegal… toda esta violência estatal sobre os pobres locais cria um grande facilitador para a violência. E depois as disputas… Há uma conexão clara entre o terrorismo em Cabo Delgado e as dívidas ilegais, não só dos interesses geopolíticos franceses, dos interesses todos que há na região, mas fundamentalmente porque vemos que a própria dívida ilegal foi justificada como uma intenção de proteger a costa marítima, de garantir o reforço da segurança justamente daquela região, que na altura estava normal e que está hoje a enfrentar problemas.  

Depois de se abastecer os bolsos das elites políticas nacionais, rebenta-nos este conflito e ninguém sabe dizer onde está o armamento que foi comprado na França. Há um relatório do Parlamento francês que mostra que Moçambique adquiriu mais de 12,3 milhões de euros em armamento da França. Ninguém sabe dizer onde estão os barcos que foram adquiridos para a patrulha marítima… há muita informação oculta. Isto num contexto em que há também clivagens entre a elites dentro do partido no poder, entre a ala do antigo do antigo Presidente e a ala do atual Presidente… é um fator a considerar na equação. 

Há fatores ligados à tensão, à guerra fria que nós vivemos na nossa região. Moçambique não tem boas relações com o Malawi, não tem boas relações com a Tanzânia… todo aquele espírito de solidariedade, de socialidade, que nós fomos narrando nas lutas de libertação, perdeu-se efetivamente e Moçambique vive numa desconfiança em relação à África do Sul, em relação à Tanzânia, em relação ao Malawi… de tal forma que em alguns momentos acusa os seus vizinhos de estarem por detrás desta insurgência. 

Há uma série de pequenos fatores, incluindo a situação penosa dos cidadãos locais… nem no pensar da resposta ao conflito são muitas vezes envolvidos. Estamos a dizer que sempre houve uma intenção dos próprios Estados Unidos de instalar uma base naval em Nacala, que durante muito tempo foi refutada, que há uma intenção da França de controlar toda a costa marítima do Oceano Índico e que é comprovada não só pelos interesses da petrolífera francesa Total como de outras empresas, como as de logística de engenharia que estão estabelecidas em Palma (Cabo Delgado). 

Então, eu acredito que colocar a resposta em insurgência olhando apenas para um fator, quer seja o gás, quer seja o extremismo religioso, é abordarmos o problema de forma irrealista. Porque só se nós olharmos para todos esses fatores e agentes facilitadores é que provavelmente poderemos ver a imagem ao fundo e pensar em abordagens que respondam de forma mais concreta a estas questões. 

O que pensa sobre a posição do Presidente de Moçambique, Filipe Nyusi, em relação ao facto de, inicialmente, não ter querido aceitar militares estrangeiros (da SADC e de países como Portugal) em território moçambicano para travar o terrorismo em Cabo Delgado? 

É preciso dizer que nós temos aqui também uma faca de dois gumes, que efetivamente é preciso que nós tenhamos apoio na resposta ao terrorismo, porque nenhum país vence sozinho o terrorismo. E, acima de tudo, é preciso considerar que há relatórios que provam e o próprio Presidente Nyusi muitas vezes reconhece que nos últimos 20 anos não houve investimento sério na defesa, nas Forças de Defesa e Segurança. E este desinvestimento nas Forças de Defesa e Segurança criou um cenário em que as mesmas não estão a responder à altura da situação de terrorismo. 

Responder ao terrorismo em Cabo Delgado apenas com uma vertente militarizada corre o risco de transformar Cabo Delgado numa zona militarizada, numa zona impossível de se habitar. 

Mas é preciso lembrar sempre que se as causas do terrorismo são múltiplas, a resposta também não pode ser em uma única direção. Responder ao terrorismo em Cabo Delgado apenas com uma vertente militarizada corre o risco de transformar Cabo Delgado numa zona militarizada, numa zona impossível de se habitar. É repetirmos uma série de situações a que temos assistido em outros contextos de guerra, como se transformou a Síria, o Iraque, o Congo… onde já é natural a insurgência. E é preciso mostrar que os interesses de mercenários, de tropas, também encerram a exploração de recursos. 

Em zonas de guerra muitos dos recursos – como rubis, outro, gás – são retirados sem que sequer haja prestação de contas. Se, por um lado, é urgente que haja uma resposta conjunta, é preciso também que essa resposta conjunta seja estruturada e que respeite os mais altos padrões de direitos humanos, que seja em conformidade com os instrumentos reguladores internacionais de atuação. 

O terrorismo está a implantar-se tal e qual como se implantou a Renamo. 

Serve também lembrar que mesmo os Estados Unidos e a França já operaram na resposta ao terrorismo em várias regiões do mundo e não resolveu o problema. Porque a resposta ao terrorismo não é apenas uma resposta militarizada. É preciso uma resposta militarizada, mas é preciso apoiar uma grande componente, mais do que uma componente militar, que é a componente de inteligência. O terrorismo denota em si uma grande componente de inteligência. É só ver como é que o terrorismo está a implantar-se. 

O terrorismo está a implantar-se tal e qual como se implantou a Renamo. A Renamo adotou duas estratégias e hoje é um partido reconhecido, com grande posição social. A Renamo, por um lado, tinha a estratégia de guerra, de guerrilha, e por outro lado tinha a estratégia de endoutrinação popular. Com uma causa, mostrou “nós estamos aqui para defender os vossos valores, porque esse Estado está a excluir-vos, a perseguir-vos, a impedir que vocês acedam a oportunidades”. 

E os terroristas de hoje também estão a aproveitar-se de uma série de feridas que os cidadãos têm. Eles explicam aos cidadãos que o Governo não está preocupado com eles: “eles estão a deixar vocês morrerem de fome, eles não estão a dar-vos nada, eu posso pagar um milhão de meticais, posso pagar seis milhões, eu estou preocupado contigo, esta guerra é justa…”. A ideia da guerra santa, a ideia da guerra que tem um propósito útil no fim do dia, a ideia de que o cidadão não pode ficar pior do que já está, que pode morrer de terrorismo mas também pode morrer de fome. E isto tem um impacto psicológico muito forte na mente das pessoas. 

Filipe Nyusi, que decidiu recentemente aceitar ajuda estrangeira, disse em dezembro de 2020 que queria evitar uma “salada de intervenções” no país… Como ocorreu esta mudança de opinião? 

A mim parece-me que o Presidente Nyusi não está muito interessado em que se saiba o que está a acontecer em Cabo Delgado, por isso é que não quer forças externas. E a SADC ficou muito tempo a pressionar o Presidente Nyusi, para considerar que pelo menos nós somos uma força regional, somos países vizinhos, devemos apoiar-nos. Mas, por causa dos conflitos de guerra, o Presidente Nyusi desconfiou do apoio da região. 

Parece que Moçambique está a ser telecomandado pela França na gestão deste conflito. 

Mas, mais gravoso ainda, é que não foi a região que convenceu Filipe Nyusi. Foi a França. Parece que Moçambique está a ser telecomandado pela França na gestão deste conflito. É só olhar para a cronologia, não só para a cronologia de todo o interesse francês neste conflito, mas a forma como o Presidente Nyusi vai à cimeira na França e quando volta da França é que volta com uma opinião diferente. Antes da cimeira da França até deu uma recepção aos diplomatas acreditados em Moçambique e disse que não ia aceitar qualquer tipo de ajuda, que não aceitava ingerência. 

De repente foi à França, reuniu-se com o Macron [presidente francês] e voltou com uma posição diferente. O Macron saiu da França, foi a Ruanda, falou com o Kagame [Presidente de Ruanda], depois saiu de Ruanda e foi à África do Sul, falou com o Ramaphosa [Presidente da África do Sul]… De repente já ouvimos que Kagame vai mandar ajuda, que Ramaphosa está a coordenar os esforços… E Ramaphosa não só se reúne com o Kagame, como também com o chefe Contra-Terrorismo dos Estados Unidos. 

Quer dizer, percebe-se que a SADC não está a agir por conta própria. Está a ser controlada por causa dos interesses franceses. Então não é genuíno se o Presidente Nyusi aceita ao apoio da SADC porque efetivamente está a considerar que a região pode ser uma mais-valia, mas está a receber o apoio porque tem medo de perder a Total, o negócio de gás. Este, mais do que beneficiar a população, só vai beneficiar as elites. As receitas do gás já estão comprometidas para pagar as dívidas ilegais que eles provocaram. Essas receitas já estão a ser pensadas para encher os bolsos das elites. Não é uma situação de preocupação real com o cidadão moçambicano. 

Sobre os milhares de deslocados (mais de 700 mil) gerados a partir de todas estas invasões feitas a Cabo Delgado, o que tem a dizer? A nível de condições em que vivem e o papel do Governo em relação a este problema… 

Nós sempre dizemos que não há fórmulas mágicas para gerir este tipo de problemas. Não são problemas planificados. No entanto, temos a sensação de que há uma certa descoordenação na resposta ao terrorismo, na resposta à assistência humanitária. E é verdade que em contexto de guerra é preciso controlar de onde vem a ajuda, como vem a ajuda. Mas, efetivamente, há uma série de redes corruptas estabelecidas no terreno que fazem com que as pessoas que mais precisam de ajuda não a recebam. 

Há uma série de deslocados que estão fora dos centros de acomodação, mas há também deslocados que estão dentro dos centros e que denunciam uma série de situações de sevícias. Em alguns centros essas pessoas muitas vezes dormem com fome, muitas não têm acesso a uma série de serviços… É verdade que há um esforço de organizações da sociedade civil, de atores diversos e organizações não governamentais (ONGs), mas a situação é cada vez mais penosa. 

Há uma rede de corrupção no seio da gestão de donativos que precisa de ser desmantelada (…) 

Há situações em que pessoas alheias aos deslocados, pessoas que não perderam os seus bens, pessoas locais de Pemba, são colocados na lista da frente para a recolha de donativos. E quando chegam esses donativos, muitos deslocados já disseram que já foram levantados em seu nome. Há uma rede de corrupção no seio da gestão de donativos que precisa de ser desmantelada, sob pena de também servir como mais um fator de mobilização para os terroristas. 

Conversando com uma série de deslocados ao nível local, foram reclamando de várias situações. Uma delas tem a ver com o facto de mulheres estarem a reportar situações de violação, abuso sexual, de gravidezes precoces. É só imaginar mesmo dentro dos centros de acomodação, onde mulheres e homens estão juntos, onde as pessoas vão fazer donativos… num país em que já foram reportados vários casos de troca de donativos por sexo. É só ver que há relatórios que mostram que há mais de 19 mil deslocadas grávidas. Estes números são assustadores, são alarmantes. Sem serviços mínimos de cuidados, numa situação de bastante precariedade… 

Então é preciso pensar numa forma de maior coordenação institucional na assistência aos deslocados, nos mecanismos de prevenção de resposta à violência baseada no género, nos mecanismos de denúncia de corrupção, na integração de assistência socioeconómica para garantir que aquelas pessoas se refaçam… até quando vamos ter pessoas nos centros de deslocado? Quantos centros de deslocados precisaremos para ter capacidade para responder às pessoas que ainda estão a chegar, numa situação bastante precária, em que muitos nem sequer têm familiares em Pemba. Então é preciso colocar um debate muito sério consequente em relação a todos esses fatores, sob pena de termos uma situação mais penosa para deslocados.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *




Artigos relacionados

Angola fortalece cooperação agropecuária com o Botsuana

Angola fortalece cooperação agropecuária com o Botsuana

Angola e Botsuana vão rubricar nos próximos dias um Memorando de Entendimento no domínio da agricultura e pecuária. A decisão…
Cabo Verde: Membro do Estado defende união entre países contra crimes financeiros

Cabo Verde: Membro do Estado defende união entre países contra crimes financeiros

A secretária de Estado do Fomento Empresarial de Cabo Verde, Adalgiza Vaz, sugeriu que as autoridades financeiras de diferentes países…
BAD estima baixo crescimento do PIB para Timor-Leste

BAD estima baixo crescimento do PIB para Timor-Leste

O Banco Asiático de Desenvolvimento (BAD) reviu em baixa as previsões do crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) de Timor-Leste…
Moçambique: Chissano defende coesão para evitar recrutamento de jovens para grupos terroristas

Moçambique: Chissano defende coesão para evitar recrutamento de jovens para grupos terroristas

O ex-Presidente de Moçambique, Joaquim Chissano, defendeu uma “coesão social efetiva” com o objetivo de evitar o recrutamento de jovens…