Venezuela: “Não existe uma solução milagrosa nem instantânea”, Sofia Alves da Associação Civil de Venezuelanos da região Sul de Portugal

A crise na Venezuela volta a ter novos contornos dramáticos. A Organização Internacional para as Migrações- OIM, em Novembro de 2018, revelou que mais de três milhões de venezuelanos deixaram o país nos últimos anos, em fuga à escassez de alimentos, violência, instabilidade política e à maior recessão económica da história do país.

 

Tendo em conta os novos desenvolvimentos, a e-global está a recolher testemunhos de lusodescendentes que contam na primeira pessoa a realidade que viveram e aquilo que muitos deles ainda sentem.

Sofia Alves, há 16 anos em Portugal, consultora de turismo e representante da Associação Civil de Venezuelanos da região centro do país,  encara os actuais de  mudança como “uma luz de esperança muito grande”

 

 Há quantos anos está em Portugal?

Cheguei a Portugal no dia 18 de agosto de 2002, faz já 16 anos.

 

O que fazia na Venezuela e qual era a sua cidade?

Eu nasci e cresci na cidade de Caracas. Sou filha de imigrantes portugueses e vivi na Venezuela até aos meus 17 anos, altura em que conclui o 12º ano e por decisão familiar vim para Portugal com os meus pais e irmã.

 

Ainda tem família a residir na Venezuela? Há quanto tempo notou que a situação tem vindo a mudar?

Sim, ainda tenho familiares na Venezuela (todos eles portugueses e luso-venezuelanos), bem como inúmeros amigos e pessoas próximas, muitos dos quais lusodescendentes. A situação na Venezuela não é recente. A decisão da minha família voltar para Portugal em 2002 teve por base vários motivos, sendo um deles a instabilidade política que já na altura existia. Obviamente que com o passar dos anos a situação foi piorando, principalmente após a tomada de posse do ex-presidente o Nicolas Maduro, o qual conseguiu mergulhar a Venezuela na pior crise económica da sua história.

 

Sentiu dificuldades para sair da Venezuela? Quando cá chegou a Portugal, sentiu que foi bem acolhida? Ainda acalenta a esperança de volta?

Na altura não tive qualquer problema para sair da Venezuela. No entanto, em março de 2017 solicitei no consulado da Venezuela em Lisboa a renovação do meu passaporte venezuelano, tendo-o obtido ano e meio depois, em outubro de 2018, o que acaba por comprovar as grandes dificuldades que os venezuelanos têm para obter o seu passaporte e qualquer outro documento pessoal.

Ha 16 anos não tive grandes problemas de adaptação, tendo sido sempre bem recebida pela generalidade da comunidade portuguesa. Obviamente, naquela época, o número de venezuelanos a residir em Portugal era muito inferior ao que se verifica hoje em dia, sendo que nos locais onde existe uma maior concentração de venezuelanos (Madeira, Aveiro, Estarreja, etc.,) começam a verificar-se alguns conflitos com algumas pessoas que consideram que a vinda dos portugueses/venezuelanos/luso-venezuelanos coloca em risco o seu bem-estar.

Desde a minha vinda para Portugal tive oportunidade de voltar à Venezuela em cinco ocasiões (2006/2008/2012/2013/2015), tendo acompanhado o degradar da situação política, económica e social, não só pelas minhas visitas, como também pelo facto de ainda ter família e muitos amigos próximos a residir naquele país, bem como pelo meu trabalho no âmbito da Venexos. Voltar é e será sempre uma esperança que a grande maioria dos venezuelanos alimenta, mesmo que no meu caso, neste momento, não coloque a hipótese de voltar para residir, mas apenas de férias.

 

Acha que as notícias que dão conta do aparecimento de um novo presidente, que tem o apoio dos EUA, pode melhorar a situação política na Venezuela ou dividir ainda mais a sociedade? Há receios de uma guerra civil?

A proclamação do Juan Guaidó como presidente interino da Venezuela é, para a grande maioria dos Venezuelanos, uma luz de esperança, podendo ser de facto o início do fim deste regime ditatorial que afundou a Venezuela na pior crise da sua história, causando uma crise humanitária sem precedentes, que já obrigou a cerca de 5 milhões de venezuelanos a abandonar o país que os viu nascer. Este é um momento de unidade, uma das coisas que este regime soube fazer (e muito bem) foi dividir a população e semear o ódio entre as partes. No entanto, a grande maioria das pessoas que apoiavam este regime são as que mais estão a sofrer as consequências desta crise tendo percebido que de facto este regime não é capaz de construir as soluções que a Venezuela precisa.

 

Como é que a comunidade portuguesa na Venezuela esta a viver estes últimos tempos? Há programas de apoio específicos para a comunidade?

A comunidade portuguesa na Venezuela é uma comunidade trabalhadora, geralmente da área do comércio, caracterizada por ser uma comunidade da classe média totalmente integrada na comunidade. Como todas as pessoas que residem na Venezuela, a comunidade portuguesa está a sentir as mesmas dificuldades: insegurança; escassez de medicamentos; escassez de alimentos; inflação que cresce de hora a hora, pelo que os rendimentos disponíveis não são suficientes para garantir as necessidades básicas das famílias; colapso total dos serviços; etc. Posto isto, a comunidade portuguesa vive momentos de elevada dificuldade, nalguns casos sobrevivendo com o apoio de familiares que se encontram em Portugal e que os ajudam, tanto economicamente como no acesso aos medicamentos que necessitam. É uma comunidade que anseia uma mudança e que gostaria de poder continuar a fazer a sua vida na Venezuela.

A Venexos, como ONG que envia ajuda humanitária para a Venezuela (comida para crianças até aos 6 anos de idade e medicamentos), recebe inúmeros pedidos de ajuda da comunidade portuguesa na Venezuela, essencialmente para a obtenção de medicamentos. Sabemos que a Secretaria de Estado das Comunidades juntamente com o Ministério de Relações Exteriores têm  criado algumas medidas de apoio à comunidade portuguesa na Venezuela, mas do nosso ponto de vista e do ponto de vista da comunidade as mesmas têm sido insuficientes. É sempre possível fazer-se mais…

 

Qual, na sua opinião, seria a solução para acabar com a crise venezuelana?

Não existe uma solução milagrosa nem instantânea. Estamos a falar de um país cujo sistema produtivo foi destruído, tendo que importar mais de 90% dos bens que consome, cuja industria petrolifera está a produzir menos de 60% do que produzia há 20 anos e está hipotecada em relação à Rússia e à China.

Para sair desta crise a primeira coisa que tem que acontecer na Venezuela é uma mudança política, mudança esta que temos esperança se tenha iniciado no dia 23 de janeiro com a proclamação do Presidente da Assembleia como Presidente Interino da Venezuela.

Tenho verificado que a comunicação social portuguesa está a utilizar, de forma errada, alguns termos. Assim, gostava de esclarecer que Juan Guaidó não se “autoproclamou” ele foi proclamado pelos milhões de venezuelanos que escolheram em 2015 esta Assembleia Nacional com maioria opositora. Recordo que as eleições presidenciais realizadas no passado mês de maio de 2018 foram fraudulentas, sendo que os resultados não foram aceites pela grande maioria da comunidade internacional, incluindo a União Europeia. Posto isto, e tendo findo o anterior mandato em dezembro de 2018, a Constituição da República da Venezuela prevê que o vazio de poder seja suplantado pelo Presidente da Assembleia da República, neste caso Juan Guaidó, pelo que falar de “auto proclamação” e de “golpe de estado” para explicar o que aconteceu nas últimas horas na Venezuela não é de todo correto.

As próximas horas e dias vão ser cruciais para o futuro daquele país e a comunidade venezuelana espalhada pelo mundo estará a acompanhar de perto a situação esperando que Portugal e os restantes países que ainda não o fizeram reconheçam oficialmente Juan Guaidó como Presidente interino da Venezuela, para que possa ocorrer uma transição pacífica e os venezuelanos sejamos chamados a participar num processo eleitoral verdadeiramente livre e democrático.

 

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