Futebol em tempo de guerra
O Líbano encontra-se desde o dia 7 de Outubro em estado de grande tensão, com trocas de ataques militares entre as tropas do Hezbollah e Israel, nomeadamente na zona sul do país, deixando uma nação inteira em standby e com genuínas preocupações relativamente a um escalar de violência. Já várias dezenas de libaneses morreram durante este conflito e mais de 40 mil cidadãos fugiram da região do Sul para localizações menos vulneráveis, nomeadamente Tyre e Beirute. Paulo decidiu permanecer. “Eu não penso muito se vamos ter de interromper o trabalho ou não. Um dia de cada vez. Basicamente, preparamo-nos para os treinos todos os dias.”No entanto, Paulo acrescenta “não te vou dizer que estou como antes. Porque não estou. Vivo bastante preocupado, ouço um helicóptero a sobrevoar a nossa casa e penso logo que poderá ser um sinal do conflito a alastrar-se até aqui. Estou também muito mais atento às notícias do que antes. Vejo também os canais de televisão portugueses para ter uma noção do que a minha família e amigos vêem a partir de lá. É a primeira vez na minha vida que estou a viver algo assim.”
Contudo, Paulo salienta que é importante transmitir às pessoas que deixou em Portugal e que seguem as notícias à distância, que “sim, vejam a televisão mas escutem-me também a mim, que cá estou. Filtrem a informação que eles ‘vendem’ lá porque as coisas aqui no Líbano não estão tão más. O conflito é mais lá para o sul e aqui em Beirute vamos vivendo normalmente, dentro dos possíveis.”
A tensão crescente no Líbano já causou alguns desfalques na equipa técnica do Nejmeh, com certos membros a verem-se obrigados a partir do país, mas Paulo, por respeito e dedicação ao plantel insistiu em ficar em Beirute e continuar a treinar o clube. Seria muito mau para a moral da equipa o treinador sair e deixar as suas tropas por sua conta. “Se eu estiver à distância e vir a gente do meu clube, os meus jogadores, no meio de uma guerra, sentiria como se estivessem a atacar a minha própria família.” Paulo confessa estar intrinsecamente ligado ao Nejmeh, aos jogadores, aos adeptos, tal e qual como família.
União e integridade no Nejmeh
Qualquer tema relacionado com o Líbano resvala inevitavelmente para discussões políticas. Mas a posição de Paulo é bastante simples: “Quando alguém me pergunta o que eu acho do Hezbollah, eu respondo sempre que não sei nem quero saber. Eu sou treinador de futebol, sou um homem do desporto. Divisões políticas existem em todo o lado, e mesmo aqui dentro do clube. Mas eu vejo-os como jogadores de futebol, não como xiitas, sunitas, católicos. Trazer este tipo de mentalidade sectária e religiosa para o balneário seria a ruína do clube.”
Este estado de espírito e atitude profissional estendem-se também para a abordagem que Paulo tem relativamente à escolha dos jogadores baseada no respectivo mérito e não nas preferências pessoais que alguns membros do clube possam ter. A cultura da ‘wasta’ (‘cunha’, em Árabe) é totalmente rejeitada por Paulo.
A frontalidade que Paulo apresenta a nível profissional é também manifestada noutros planos. Quando se juntou ao clube, Paulo reparou, atónito, que os jogadores costumavam deixar lixo no relvado. “Havia garrafas por todo o lado. Não podia ser. Tive uma conversa franca com o plantel e disse-lhes que eles são a referência para os mais novos. Se eles vos vêem a não respeitar o espaço, ficam logo com um péssimo exemplo a seguir.” Paulo acrescentou ainda que há palavras-chave que ele aplica no balneário não só para motivar os jogadores mas também para criar um sentido de união e integridade: “Team spirit, team work, friendship, commitment, sacrifice. Isto tem a ver com os nossos princípios e valores. Isto representa a nossa identidade. E eu digo-lhes que se eles colocam isto em prática, será uma grande influência para quem nos está a ver. O Nejmeh é uma grande referência para o Líbano, para os mais jovens. O futebol é um enorme veículo de transmissão de princípios e valores para o bem e para o mal.”, remata entusiasticamente. Em suma, futebol não é apenas jogo, é comunidade, é cultura.
O Líbano como lar
A conversa alonga-se ao som de música tradicional libanesa e clientes em animada socialização entre chás, cafés e shishas no restaurante que esporadicamente mergulha em escuridão absoluta, algo que nos relembra que a crise da falta de electricidade é uma constante no Líbano. Esta é uma das muitas lacunas que afecta o país e as condições de vida e trabalho dos seus habitantes. Mas a perseverança e resiliência estão também presentes e o Líbano “é um país incrível e só vivendo cá é que as pessoas podem ter noção do seu potencial imenso. O clima é bastante agradável e a comida é excelente, não muito diferente daquela a que estamos habituados em Portugal ou Espanha. E depois temos lugares lindíssimos neste país. Byblos, Batroun, Faraya (nas montanhas) e Harissa (que me transmite uma paz incrível).”
Mas são as pessoas que fazem o Líbano, e desde o dia em que chegou, Paulo sentiu uma hospitalidade e calor humano por parte da equipa do Nejmeh e mais tarde através dos adeptos. “Quando aqui cheguei disseram-me que as pessoas na cultura Árabe são muito desconfiados até te conhecerem. Mas uma vez que eles ganham alguma confiança, morrem por ti. Portanto tens de vir de coração aberto.”
E são as pessoas de quem Paulo sentirá mais falta se um dia tiver de partir, seja por uma melhor oportunidade de trabalho ou por uma guerra que poderá chegar até Beirute.
“Esperemos que não. Um dia de cada vez.”
João Sousa