Um Prólogo Inesperado
“Tens de pelo menos uma vez na vida visitar o Líbano, habibi”, disse-me Haytham durante uma noite de neve em Marrocos, dentro da sua casa em Ifrane. Ele próprio um amante de viagens, Haytham identificou-se instintivamente com minha obsessão por viajar e mergulhar nas culturas locais e estava genuinamente entusiasmado por me apresentar a sua amada nação. “Mas meu caro, o Líbano não está no meu roteiro”, respondi, enquanto saboreava a farta refeição libanesa caseira preparada por Haytham para mim e o resto dos seus convidados, membros da comunidade Couchsurfing e que se encontravam de passagem pelo Médio Atlas Marroquino.
Uma noite de hospitalidade multiplicou-se por mais alguns dias em Ifrane, sempre na companhia de Haytham, libanês cristão naquela altura sediado em Marrocos para desenvolver projectos arquitectónicos. Haytham não se tornou apenas um amigo do peito – pessoa extraordinária, com um genuíno ‘joie de vivre’ – mas uma inspiração para alterar o meu rumo e visitar o Líbano.
Destino: Beirute
E meses mais tarde, em Outubro de 2016, findas as minhas deambulações pelo Norte de África, encontrava-me num avião para Beirute, sabendo propositadamente o mínimo possível sobre esta infame cidade, na esperança de ser surpreendido pelo que iria encontrar durante a minha estadia de dois meses e de alguma forma esperando uma redefinição das minhas ideias pré-concebidas da Paris do Médio Oriente, lugar que durante décadas foi retratado pelos média ocidentais como uma zona de guerra infernal e um lugar a ser evitado. Sentados ao meu lado no avião estava um casal libanês com quem encetei uma conversa que só terminou quando aterrámos em solo libanês. Philippe e a sua namorada na altura deram-me os respectivos contactos e puseram-se à disposição para me ajudar caso fosse necessário. E dias mais tarde, fazendo jus à reputação hospitaleira do povo libanês, ofereceram-me guarida no seu chalé à beira mar, a norte de Beirute. Durante os dois meses de estadia, apresentaram-me à cultura complexa do Líbano, à sua História conturbada, à sua gastronomia maravilhosamente rica e viciante e ao fortíssimo conceito de família. O domingo, em particular, era o dia sagrado para o almoço em família. Absolutamente incontornável. Senti-me em casa, rodeado por estranhos ou pessoas que mal conhecia. E estranhos tornaram-se amigos, algo que tinha vivenciado em Marrocos, em casa do Haytham. Em dois meses, calcorreei as ruas caóticas de Beirute, que me estimularam a paixão pela fotografia, percorri a costa mediterrânica perdendo-me nos mercados históricos de Byblos, Saida, Tiro e Tripoli. Visitei as imponentes ruínas romanas em Baalbeck e apaixonei-me pelos místicos Cedros de Deus e pelo vasto Vale de Qadisha, onde conheci o Santo Dario Escobar, um eremita a viver numa gruta, com quem passei uma tarde em animada conversa sobre futebol, Eusébio e Júlio Iglesias.
O Líbano foi inesperado, caótico, inconcebivelmente humano. E sempre com o almoço de domingo em família à minha espera em Beirute. No momento da despedida, Philippe disse-me no aeroporto que um dia eu voltaria ao Líbano. Eu concordei, mas era uma incógnita para mim quando esse momento aconteceria.
Regresso a ‘casa’
Quatro anos depois, e após perder um voo para Teerão, uma decisão impulsiva levou-me de volta a mais um avião rumo a Beirute. O Líbano estava diferente: turbulência política, protestos em massa nas ruas e uma moeda nacional em queda livre. “Escolheste o pior momento para voltar ao Líbano, habibi”, disse o Philippe, em tom jocoso, quando me foi buscar ao aeroporto. “Não te preocupes, meu caro”, respondi, “desta vez só estarei aqui por três semanas”, descartando involuntariamente a natureza magnética e fortuita de Beirute. E, como que por magia, fui contratado como fotojornalista do jornal local L’Orient Le Jour no dia seguinte e juntei-me às multidões furiosas nas ruas, documentando a sua Revolução em curso contra o tóxico status quo político libanês.
A Revolução, que tinha tido início em Outubro de 2019, estava de regresso em força em Janeiro de 2020. Umas férias improvisadas de três semanas transformaram-se assim num emprego a tempo inteiro, cobrindo os vários protestos em Beirute e para lá da capital, que me tornaram cada vez mais consciente das lutas do povo, outrora orgulhoso da sua resiliência e agora rejeitando o seu conceito e simplesmente abraçando a pura resistência.
Retido no Líbano
E, no entanto, a resistência não foi suficientemente forte para manter as pessoas em protesto quando a Covid-19 chegou. As ruas foram subitamente esvaziadas e a Revolução silenciada durante meses. O meu trabalho como fotojornalista, porém, continuou. Percorri uma Beirute quase pós-apocalíptica em busca de histórias sobre a vida durante esta pandemia inesperada. As buzinas frenéticas dos motoristas foram substituídas pelo chilrear dos pássaros (um som que eu nunca tinha ouvido antes no centro de Beirute) e o ar parecia mais limpo do que nunca. Andar pelas ruas vazias tornou-se um prazer inédito. Mas não demorou muito para que Beirute fosse gradualmente preenchida novamente com os ecos da Revolução. Inúmeros protestos seguiram-se à medida que a crise política e socioeconómica se aprofundava.
4 de Agosto, uma dia imperdoável
E, numa pacata tarde de Agosto – e aparentemente do nada – Beirute foi brutalmente abalada por uma explosão devastadora.
Tudo ao nosso redor se despedaçou, deixando-nos em choque imediato. Os sons que se seguiram à explosão foram gritos penetrantes de horror e dor. Para onde quer que eu olhasse, todas as janelas estavam nuas, sem vidros. Os humanos vagavam sem rumo pelo caos enquanto eu caminhava em direção ao fumo que se elevava do porto. Havia vidros partidos, sangue e rostos desfigurados. Todos ficámos em choque colectivo. Mar Mikhail e Gemmayzeh, lugares familiares para mim, de repente tornaram-se no que parecia ser uma zona de guerra. Carros tombaram, edifícios inteiros transformados em carcaças e multidões de civis tentando desesperadamente ajudar-se uns aos outros. Foi então que eu vi o porto. A fumaça gigantesca ainda subia enquanto paramédicos e bombeiros atravessavam o caos sangrento. A explosão acontece quando eu estava em casa, apenas a 800 metros de distância do epicentro explosivo.
Naquela noite não consegui dormir. A adrenalina era demasiado avassaladora. Passei a madrugada seguinte a caminhar por Beirute, fotografando os seus recantos devastados. Outrora o lindo caos transformado num caos horrível. Mas foi nos escombros que de repente vi um exército inesperado a emergir. Milhares de seres humanos saíram às ruas, armados com vassouras e pás para limpar a destruição deixada pelas 2.750 toneladas de nitrato de amónio explodidas no porto. Foi comovente testemunhar esta força colectiva unida para recuperar a sua Beirute.“Beirute irá renascer das cinzas novamente, habibi”, muitas vozes me disseram. Eu não tinha dúvidas sobre isso.
João Sousa