A vida depois da explosão
Mais de três anos mais tarde, vejo Beirute a erguer-se lenta mas dolorosamente. Ainda no meio de uma crise socioeconómica sem precedentes e de incerteza política, muitos ainda permanecem aqui (aqueles que não puderam partir e aqueles que decidiram ficar e lutar todos os dias pelos seus direitos e por um Líbano melhor). Muitos amigos partiram. Philippe foi um deles, juntando-se à Diáspora, destino que sazonalmente vê centenas de milhares de libaneses a sair da sua terra amada em busca de uma vida com mais segurança, mas com a dor da distância da família. Nos três anos que se seguiram à minha chegada a Beirute, continuei a trabalhar como fotojornalista.
A minha câmara fotográfica registou a reconstrução de Beirute, a crise da electricidade, a escassez de combustível e de medicamentos, as vidas precárias dos refugiados (Sírios, Palestinianos e também Libaneses, que desde a crise de 2020 tentam a sua sorte em perigosas e por vezes fatais fugas através do Mediterrâneo rumo à Europa), os tiroteios sangrentos em Tayouneh (onde se temeu o início de uma segunda guerra civil), as tensões sectárias, e muita reportagem sobre a vida no Líbano, passando por inúmeras histórias dos habitantes deste país fascinante e, inevitavelmente a gastronomia nacional. Tornei-me também num líder de viagens, a convite do Francisco Agostinho, fundador da agência 100rota, contando já com vários grupos de viajantes portugueses que se aventuraram pelo Líbano adentro.
O amor e a família
Mas o mais inesperado nestas deambulações pelo Levante foi ter encontrado uma família que é agora a minha família. Conheci a Soha numa maratona fotográfica na cidade de Tiro em 2016, durante a minha primeira viagem por terras libanesas e mantivemos contacto remotamente até ao meu regresso em 2020. Nesse ano caótico e totalmente imprevisível, conhecemo-nos melhor e acabámos por nos apaixonar um pelo outro.
A Soha foi uma lufada de ar fresco na minha vida, uma força da natureza, repleta de qualidades pessoais e de uma humanidade rara que eu senti – e ainda hoje sinto – que não merecia. A Soha apresentou-me à sua numerosa família, oriunda do sul do Líbano, que me adoptou de forma incondicional. Casámos em Outubro desse ano, num dia repleto de festa e felicidade. A lua de mel, no entanto, teve de aguardar um ano, devido às complicações burocráticas de obter um visto para poder viajar com ela para fora do Líbano. Se há algo que a Soha me tem ensinado todos os dias é a ter paciência. E foi necessária paciência quase infinita para lidar com todo o emaranhado burocrático que envolve um matrimónio com uma libanesa. Viajámos até ao Chipre e meses mais tarde fomos até Espanha e Portugal, onde conheceu a minha mãe e amigos de longa data. Mas o Líbano continuou a chamar por nós, e estávamos de regresso ao fim de um mês. E foi nessa altura que nos chegou a nossa melhor notícia de sempre: a gravidez da Soha. Ponderámos emigrar definitivamente para nos proporcionar uma vida mais estável, mas decidimos permanecer no Líbano.
Nove meses mais tarde, a nossa Selena nasceu. Ainda hoje não acreditamos na sorte que tivemos com este pequeno milagre que chegou às nossas vidas. A Selena herdou a beleza e inteligência da Soha e a minha casmurrice. É também ela uma força da natureza e o centro das nossas existências. A alma da nossa casa. Apesar da felicidade imensa que sentimos todos os dias, quase um ano depois, ainda estamos à espera do desfecho do longo e penoso processo de naturalização portuguesa da Selena; no Líbano, a nacionalidade é transmitida pela parte do pai, portanto a Selena nunca poderá ser libanesa. A angústia que sentimos é exacerbada pelo facto do Líbano se encontrar de momento em guerra com Israel. A qualquer momento, o conflito pode alastrar-se até Beirute, o que nos forçará a fugir do país.
E apesar de todos os problemas que nos assolam diariamente, olho para a minha vida e como Beirute a mudou de forma irreversível. A Soha, a minha alma gémea, brinca com a nossa Selena no quarto, em nossa casa, um refúgio seguro que construímos para nós mesmos no meio deste furacão chamado Líbano. Apesar de todas as lutas e traumas sucessivos, estou infinitamente mais feliz do que nunca e imensamente grato pelo que a terra dos Cedros me deu.
João Sousa