Eleições Guiné-Bissau: Fernando Dias e Sissoco Embaló travam duelo eleitoral decisivo

Há três meses, nem mesmo os analistas mais atentos consideravam Fernando Dias um candidato credível às eleições presidenciais de 23 de novembro. Vários fatores contribuíam para essa perceção, a idade, a crise interna no PRS e o facto de Nuno Nabian e Domingos Simões Pereira (DSP) serem, nos últimos seis anos, os únicos apontados como possíveis adversários do chefe de Estado cessante, Umaro Sissoco Embaló. Contudo, há cerca de dois meses, essa tendência inverteu-se e assistiu-se a um volte-face que parece estar a catapultar o presidente interino de uma das alas do PRS para os corredores do Palácio Rosa.

Apresentando-se como “candidato da reposição da legalidade na Guiné-Bissau”, Fernando Dias tem-se afirmado progressivamente como um verdadeiro movimento nacional em direção à Presidência. A adesão à sua candidatura cresce dia após dia, e o país arrisca-se a viver um efeito Sonko/Faye, semelhante ao registado no Senegal há dois anos. A dupla Dias/DSP tornou-se já uma marca desta campanha, criada para enfrentar o eixo Sissoco/Plataforma.

Tudo indica que Sissoco Embaló vencerá nas legislativas, por dispor de terreno quase exclusivo, mas nas presidenciais não goza da mesma vantagem. Batista Sigá, candidato independente, desistiu ao quinto dia de campanha em favor de Fernando Dias. Nesta fase inicial, as passeatas tornaram-se um instrumento estratégico crucial, tanto para testar a credibilidade das candidaturas como para medir a resistência dos militantes, simpatizantes e do público anónimo.

O fenómeno Fernando Dias, o “candidato-revelação”, surgiu de modo repentino, e todos os sinais apontam para um sucesso anunciado. Mas como nasceu esta candidatura? A Coligação Aliança Patriótica Inclusiva (API Cabas Garandi), que reunia PRS, APU-PDGB, MADEM, MGD e FREPASNA, entrou em crise quase um ano após a sua criação, em grande parte devido à interferência de Umaro Sissoco Embaló. Este, através de manobras políticas, conseguiu que Braima Camará, então coordenador de uma das alas do MADEM G-15, regressasse à procedência para se juntar a Sissoco Embaló. A mesma estratégia, conduzida nos bastidores, levou Nuno Nabian a abandonar a API-Cabas Garandi, após não ter sido escolhido como candidato presidencial.

Entretanto, Baciro Djá, depois de longa disputa para ser reconhecido como coordenador rotativo da coligação, também se retirou, convicto de possuir maior peso político do que qualquer outro elemento da API-Cabas Garandi, decidindo avançar com o seu próprio partido e candidatura.

A coligação, que prometia um futuro promissor aquando da sua fundação, acabou por se transformar num projeto natimorto, sepultado pela decisão do Supremo Tribunal de Justiça. Fernando Dias manteve-se com a ala do PRS que a justiça impedira de liderar o partido, e permaneceram consigo, dentro da API-Cabas Garandi, os dissidentes do MADEM que rejeitaram a reconciliação entre Braima Camará e Sissoco Embaló.

Nuno Nabian abandonou definitivamente a coligação quando percebeu que poderia perder a votação interna para a candidatura presidencial. A sua saída abriu caminho a Fernando Dias que, embora independente, passou a contar com o apoio dos partidos e dirigentes remanescentes da API.

A trajetória de Fernando Dias evoluiu favoravelmente quando o Supremo Tribunal de Justiça decidiu impedir, de forma considerada “ilegal” por muitos, a candidatura de Domingos Simões Pereira e da Coligação PAI-Terra Ranka às eleições. Dias e a sua equipa desenvolveram então intensos contactos com o PAIGC e a coligação PAI-Terra Ranka, dos quais resultou o apoio formal destas forças à sua candidatura presidencial.

Com apenas uma semana de campanha, Fernando Dias consolidou uma convicção partilhada, havendo segunda volta, ele será certamente um dos finalistas. O fator decisivo está na capacidade de mobilização do PAIGC e do seu líder, cuja influência permanece intacta.

Dois testes realizados em Bissau confirmaram que a confiança no PAIGC e no carisma de Domingos Simões Pereira se mantêm firmes. O partido parece disposto a mobilizar-se integralmente através da candidatura de Fernando Dias. Paralelamente, reforça-se, em torno dele, um sentimento de revolta entre muitos cidadãos balantas, acompanhado de uma crescente identificação pessoal com o candidato.

Tribalismos e acusações mútuas

O confronto no terreno não tem sido, de modo algum, fácil para os adversários. Para Sissoco Embaló, a disputa tornou-se particularmente árdua, visto que a candidatura de José Mário Vaz parece não ter fôlego suficiente para acompanhar o ritmo da corrida; a de João Bernardo Vieira, ainda menos.

Fernando Dias iniciou a campanha quatro dias após a data oficial de arranque e, logo no primeiro ato público, surpreendeu. A sua estreia, com uma longa passeata pelas principais ruas de Bissau, culminou num comício. Nesse evento, Domingos Simões Pereira, presidente do PAIGC e coordenador da Coligação PAI-Terra Ranka, declarou que, se antes estava preparado para fazer campanha a 100%, agora está a 200%. Pediu aos militantes do partido que o acompanhassem nesta jornada, qualificando-a como uma das últimas oportunidades para “restaurar a democracia”.

Simões Pereira considerou “uma coincidência positiva” ver o PAIGC e o PRS lado a lado na defesa dos valores democráticos. “Se olharem para nós, verão que aqui estão guineenses. Aqueles que nos atormentam e violam os nossos direitos não o são, e não devemos temê-los”, afirmou, numa clara alusão a Umaro Sissoco Embaló, cuja mãe, segundo o próprio, tem origem maliana.

A questão da nacionalidade de Embaló começou, de facto, a ser posta em causa quando, pela primeira vez, o Supremo Tribunal de Justiça admitiu a impossibilidade de analisar objetivamente a sua candidatura. Nessa altura, e num tom de quase revolta, o então presidente da dissolvida ANP questionou a motivação da mais alta instância judicial e recordou que o próprio Embaló admitira que a mãe não era guineense. “A lei exige quatro avós originários. Ele não tem”, reforçou Simões Pereira.

Ao tomar a palavra, Fernando Dias agradeceu publicamente ao PAIGC e à Coligação PAI-Terra Ranka pelo apoio recebido. “Ensinaram-nos como se faz uma campanha eleitoral. Muito obrigado. Penso que Umaro Sissoco já deve estar arrependido de ter impedido a candidatura de Domingos Simões Pereira e da PAI-Terra Ranka. Certamente não esperava esta dinâmica. Vamos vencer estas eleições para repor a ordem”, afirmou o candidato.

Os primeiros dias da campanha foram marcados por uma tensão crescente. No segundo dia, Fernando Dias introduziu um tema sensível, o debate étnico-tribal. “Se for eleito Presidente, não permitirei que continuem a prender balantas. Isso vai acabar. Não é normal, ao longo destes anos, Sissoco Embaló passar o tempo a prender balantas, e termos balantas a apoiá-lo. É bom que saibam que, se isso continuar assim, os próximos serão eles”, advertiu.

Com tais declarações, Fernando Dias incendiou o debate político. Do lado de Embaló, a defesa coube a Nuno Nabian e Augusto Kabi, ambos dirigentes balantas recentemente cooptados para reforçar a imagem do presidente junto desse grupo étnico. Kabi acusou Fernando Dias de instrumentalizar o tribalismo e foi mais longe, afirmando que o candidato teria conhecimento prévio do alegado golpe de Estado de 1 de fevereiro.

“Digam a Fernando Dias que o acuso de saber do golpe. Sabem porquê? Quando atacaram a sala do Conselho de Ministros, ele não estava lá, porque recebeu uma mensagem e saiu. Eu permaneci na sala e saí pelos meus próprios pés pela porta principal do Palácio do Governo. No dia seguinte perguntei-lhe onde estava durante os tiros, e ele respondeu que fora buscar um documento ao gabinete. Isso revela cumplicidade, quando estás no Conselho de Ministros, é o teu chefe de gabinete que faz esse serviço. Portanto, o balanta envolvido em golpe será preso”, declarou Augusto Kabi.

Apesar da tentativa de descredibilização, a verdade é que a mensagem de Fernando Dias passou. Ganhou simpatia entre muitos balantas, ao ponto de surgirem defensores espontâneos da sua causa. No dia seguinte às suas declarações, um grupo de anciãos desse grupo reuniu-se em Nhoma, a “terra sagrada dos balantas”, para enviar um aviso severo ao Presidente da República e ao Chefe do Estado-Maior Biagué Na N’Tan. Condenaram a prisão do general Daba Naualna e advertiram que, caso Fernando Dias fosse detido, “ajustariam contas” com quem o tentasse.

No lançamento do seu manifesto eleitoral, Umaro Sissoco Embaló retomou o tema. Acusou Domingos Simões Pereira, Agnelo Regalla e Geraldo Martins de envolvimento no golpe de Estado e prometeu prendê-los assim que vencesse as eleições. “As dinâmicas étnico-tribais de Fernando Dias estão a ser alimentadas por terceiros. Gostaria de ter o temperamento fula do meu pai, mas domina em mim o bambara da minha mãe. Por isso, todos os que tentaram golpe de Estado serão presos no dia 24 de novembro. Geraldo Martins é meu amigo, mas já lhe mandei recado, vou prendê-lo. Domingos, a última função que teve neste país foi a de presidente da ANP, e jamais voltará a ocupar outro cargo. Agnelo Regalla é um golpista, parece um administrador colonial. Corri com ele da Presidência quando falou mal de Nino Vieira. Se os prender agora, dirão que é perseguição; ganharei as eleições e só então os prenderei”, garantiu.

A dinâmica da campanha de Fernando Dias perturbou visivelmente o chefe de Estado cessante. Para Embaló, o PAIGC não deveria sequer indicar o voto, devendo adotar a neutralidade do PDCI na Costa do Marfim. “Isso é que devia ser o comportamento de Domingos Simões Pereira, se realmente amasse o PAIGC. Mas como prefere perturbar, vamos ajustar as contas”, declarou.

No debate étnico-tribal, uma questão tornou-se incontornável, entre os cerca de trinta grupos étnicos reconhecidos na Guiné-Bissau, incluindo os minoritários e os em extinção, não existe o grupo bambara, que é originário do Mali.

Após a passeata conjunta de DSP/Dias, a candidatura de Embaló respondeu com uma nova mobilização em Bissau. De regresso da campanha no interior, o Presidente organizou um grande comício no Círculo 29, Bairro Militar, um dos de maior eleitorado. A afluência superou as expectativas, mas não sem polémica, surgiram acusações de que alguns participantes teriam sido pagos com 2 mil francos CFA para comparecer.

No seu discurso, Embaló voltou a falar em vitória certa e prometeu “restabelecer a ordem” na Guiné-Bissau.

Eleição ainda não decidida

Ganhar estas eleições não será tarefa simples para Umaro Sissoco Embaló. O processo está longe de ser um “conto de fadas”, e os obstáculos são numerosos. Entre os fatores que lhe são desfavoráveis destaca-se o potencial eleitoral do PAIGC, que desde a ascensão de Domingos Simões Pereira tem vindo a crescer de forma consistente. A reforma imposta pelo atual líder tornou o partido mais coeso e fiel, transformando-o num núcleo de eleitores convictos e radicais.

Desde 2014, a média de votos do PAIGC estabilizou-se acima dos 200 mil. Em 2019, Domingos Simões Pereira perdeu as eleições presidenciais com 254 mil votos, contra 294 mil de Umaro Sissoco Embaló, este último então apoiado por uma ampla frente composta pelo MADEM, PRS, José Mário Vaz, Nuno Nabian e mais dezoito partidos. Antes dessa coligação, porém, Domingos Simões Pereira vencera a primeira volta com 222 mil votos, contra 153 mil de Embaló.

Hoje, o cenário é distinto, e pouco favorável ao Presidente cessante. O PRS, que em 2019 contribuíra com 71 mil votos para Nuno Nabian, junta-se agora aos 254 mil de Simões Pereira. O MADEM, por sua vez, está profundamente dividido, e um número expressivo de dirigentes apoia abertamente a campanha de Fernando Dias. Nas últimas legislativas, o MADEM obteve 163 mil votos e Botche Candé cerca de 54 mil. José Mário Vaz concorreu sozinho e, apesar disso, dificilmente alterará a sua base eleitoral.

Assim, Fernando Dias consolidou-se como um candidato respeitado, e o próprio Umaro Sissoco Embaló parece o reconhecer. No discurso e no comportamento, é notório que o atual Presidente se sente pressionado por uma dinâmica que já não controla. Segundo ele, essa dinâmica “golpista” está a ser imposta por forças externas, numa tentativa de o desestabilizar politicamente.

As aparições públicas de Embaló têm sido marcadas por ataques reiterados a Domingos Simões Pereira, a ponto de parecer que é este o verdadeiro adversário em vez de Fernando Dias. Paradoxalmente, essa insistência tem servido de combustível à velocidade com que Dias pretende ganhar terreno. No campo adversário, há quem acredite que, derrubando Domingos, se enfraquecerá colateralmente Fernando Dias.

Outra passeata

Nas ruas, o segundo maior ato público de Fernando Dias realizou-se novamente em Bissau, no Círculo 25, bastião histórico de Kumba Ialá e do PRS, mas reconquistado pelo PAIGC nas últimas três eleições. A meio do comício, a empresa fornecedora cortou a energia elétrica, provocando protestos imediatos contra o regime. Entre cânticos espontâneos, apoiantes de Dias pediam aos militares que “não se metessem”.

Apesar dos incidentes, a mobilização em torno da candidatura de Fernando Dias manteve-se alta.

No dia 9, a Plataforma Republicana “Nô Kumpu Guiné”, que apoia a candidatura de Sissoco Embaló, realizou também uma passeata, culminando num comício. O primeiro-ministro Braima Camará, no seu discurso, pediu aos mandatários de Sissoco Embaló e da Plataforma Republicana para prepararem a “festa da vitória” às 19 horas do dia da votação. Muitos esperavam a presença do próprio Embaló, mas este encontrava-se nas ilhas Bolama/Bijagós em campanha.

Eleições legislativas esquecidas

Estas eleições gerais assumem um claro pendor presidencialista, todos os candidatos estão mais concentrados em conquistar a Presidência do que em discutir programas legislativos.

Nas legislativas, a Plataforma Republicana apresentou um manifesto discreto, praticamente ignorado pela população. Já nas presidenciais, Umaro Sissoco Embaló promete “continuar o seu trabalho”, enquanto Fernando Dias reafirma a urgência de “restabelecer a ordem democrática”.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Subescreve a Newsletter

Artigos Relacionados

Guiné-Bissau: Inconformados do PAIGC denunciam violação dos estatutos do partido

Um grupo de dirigentes e militantes do Partido...

0

Guiné-Bissau: Fernando Dias critica perseguição étnica e acusa regime de manipulação

O candidato independente afirma que “a verdade sobre...

0

Procuradores-Gerais dos países da CPLP realizam XXII Encontro

Os Procuradores-Gerais de Angola, Brasil, Cabo-Verde, Guiné Equatorial,...

0