“Sem reconciliação, não há paz e sem paz, não há futuro”. É com esta convicção que João Bernardo Vieira (JBV) lança um apelo urgente à classe política guineense: sentar-se à mesa, assumir compromissos sérios e resgatar a credibilidade da Guiné-Bissau. Em entrevista à e-Global, JBV denuncia o imobilismo institucional, propõe uma agenda de reconciliação nacional e traça uma visão estratégica para tirar o país do ciclo vicioso de crises, corrupção e dependência externa.
e-Global: Que fórmula propõe para garantir a estabilidade política e institucional na Guiné-Bissau, país historicamente marcado por golpes de Estado e instabilidade?
João Bernardo Vieira (JBV): Não existe nenhuma fórmula mágica. A única via possível é uma reconciliação genuína, baseada no entendimento e perdão mútuos. Não podemos sair deste ciclo de instabilidade sem que os guineenses dialoguem entre si. Por isso, acredito no Projecto Agenda da Paz, uma iniciativa inclusiva que pretende contribuir para a estabilidade nacional, ultrapassar divisões históricas e promover um ambiente de diálogo entre os diferentes atores políticos e sociais. O objectivo é construir consensos em torno de princípios fundamentais como a paz, a justiça, a reconciliação e o desenvolvimento sustentável.
Por que razão não funcionou até agora e por que acredita que pode funcionar?
Não fiz um estudo aprofundado sobre as razões pelas quais a reconciliação não avançou, mas posso supor que terá havido pouca vontade política ou falta de dinamismo da comissão responsável. Ainda assim, não me sinto desencorajado. O insucesso anterior não invalida a viabilidade da agenda. Acredito sinceramente que os guineenses podem sentar-se à mesa, discutir os problemas do país e assumir compromissos sérios pelo bem da Guiné-Bissau. No fundo, todos queremos o mesmo.
Qual é, para si, o primeiro passo para essa reconciliação?
O reencontro entre os guineenses. Esse é o primeiro passo. Conseguir juntar diferentes sensibilidades à volta de uma mesa já seria uma grande conquista. Que eu saiba, isso nunca aconteceu. Iniciar um verdadeiro diálogo nacional é, por si só, um avanço importante.
Depois, é necessário assumir compromissos, sobretudo por parte das lideranças políticas, no sentido de evitarem comportamentos que possam incendiar o país. Esses compromissos devem ser estendidos também aos seguidores. A sociedade e a política guineenses estão profundamente divididas, e é fundamental haver um entendimento mínimo. Não estou a pedir o adiamento ou antecipação de eleições, nem a reposição do presidente da Assembleia. Isso, nesta fase, teria pouco impacto. O que está em causa não são lugares, mas princípios. O presidente da Assembleia é eleito por uma legislatura, e isso deve ser respeitado.
O essencial é criar um espaço de diálogo. Não se alcançam grandes consensos de uma vez. É um processo que precisa de tempo e persistência. Mas criar este precedente de diálogo já seria um grande passo.
A corrupção e a falta de transparência são apontadas há muito como grandes problemas na Guiné-Bissau. Que soluções propõe?
A corrupção não é um problema exclusivo da Guiné-Bissau; existe em muitos países, africanos e não só. No nosso caso, o combate à corrupção está directamente ligado ao respeito pela lei. Precisamos de um Estado forte, com instituições que funcionem sem interferência do poder político.
É essencial haver transparência na administração pública. Os cidadãos devem participar na elaboração das leis, e as contas do Estado devem ser tornadas públicas regularmente – mensal, trimestral ou anualmente – para que todos possam acompanhar as receitas e despesas. Com a Assembleia Nacional inoperante, esse escrutínio torna-se quase impossível.
Defendo também a digitalização da administração pública, reduzindo o manuseamento de dinheiro em líquido e formalizando os processos financeiros. A inovação e o rigor são fundamentais para prevenir a corrupção.
A economia guineense depende fortemente da ajuda externa e da exportação da castanha de caju. Que estratégia propõe para diversificar a economia?
A Guiné-Bissau é um país agrícola por excelência, mas exploramos mal o nosso potencial. Nem 40% das terras aráveis estão aproveitadas. Com terra fértil e abundância de água, podemos produzir muito mais – não só castanha de caju, mas também arroz, amendoim, manga, papaia, ananás, entre outros.
Temos de investir na transformação local desses produtos, gerando valor acrescentado. A industrialização agroalimentar é essencial para reduzir a dependência externa e reforçar a nossa soberania económica. Um país que não consegue alimentar-se a si próprio tem dificuldades em afirmar-se no plano internacional.
A industrialização é, portanto, uma prioridade?
Sem dúvida. Se quisermos ser competitivos neste mundo globalizado, temos de apostar na industrialização. Veja-se o exemplo da Costa do Marfim, que se tornou líder na produção de caju graças a uma visão clara e coragem política. Começaram depois de nós e hoje produzem quase um milhão de toneladas por ano. A Guiné-Bissau precisa desse espírito inovador.
Como avalia o papel da CEDEAO na Guiné-Bissau e que tipo de relação defende com esta organização?
A CEDEAO tem tido um papel activo na Guiné-Bissau, tanto a nível político como militar. Sou pan-africanista e defensor da integração regional. Acredito que os problemas africanos devem ser resolvidos por africanos. O exemplo do acordo entre o Ruanda e a RDC (República Democrática do Congo), assinado fora de África, mostra a nossa fragilidade institucional enquanto continente.
A CEDEAO deve ser vista não só como mediadora de conflitos, mas também como entidade de prevenção e consolidação do Estado de direito. Precisamos de manter os países unidos e evitar rupturas como as dos países do AES (Aliança dos Estados do Sahel). O trabalho de líderes como John Mahama e Julius Maada Bio para reintegrar esses países é admirável.
Como pode a Guiné-Bissau recuperar credibilidade junto dos seus vizinhos e parceiros internacionais?
Um país com instituições frágeis e instabilidade crónica não pode aspirar a uma democracia plena. Os guineenses precisam de se reencontrar. Uma conferência nacional de paz e reconciliação seria um passo decisivo.
Não podemos continuar em crise permanente. É preciso mostrar à comunidade internacional que estamos unidos. Para recuperar credibilidade, temos de “arrumar a casa”, cumprir com as nossas obrigações internacionais, pagar as nossas quotas e respeitar os compromissos assumidos. Só assim nos tornaremos um “bom aluno” e seremos respeitados.
Como deve posicionar-se a Guiné-Bissau no actual contexto geopolítico mundial?
A Guiné-Bissau sempre soube preservar os seus parceiros privilegiados. A Rússia e a China foram aliados históricos, e devemos continuar a aprofundar essas relações. A União Europeia tem sido um parceiro essencial, e estamos gratos, mas temos de estar abertos a novas alianças com países asiáticos, da América Latina, Austrália e os países nórdicos que nos apoiaram durante a luta de libertação, como a Suécia de Olof Palme.
Devemos reforçar também a cooperação Sul-Sul. A Guiné-Bissau não deve alinhar-se exclusivamente com um bloco, mas sim praticar uma diplomacia estratégica, baseada no interesse nacional e na diversificação de parcerias para tirar o país da pobreza.
Defende uma diplomacia de neutralidade?
Defendo uma diplomacia aberta e pragmática. A Guiné-Bissau deve manter boas relações com todos os blocos, com todos os países dispostos a ajudar-nos a alcançar o bem-estar social e económico. Não se trata de manter fidelidade cega a antigas alianças, mas sim de adaptar-nos à realidade geopolítica actual com uma diplomacia forte, que nos permita explorar os nossos recursos naturais e reforçar a nossa posição no mundo.