Uma história de reencontro com as raízes, com a arte e com o silêncio criativo que transforma barro em presença
Leisi Ileida Gramazda Fernandes é o tipo de pessoa que parece conversar com o barro. Com as mãos cobertas de argila, sentada à roda de cerâmica no ateliê de São Domingos, ela diz que é ali que se sente em paz. “Quando toquei na cerâmica pela primeira vez, senti que aquilo fazia sentido. Foi um momento de clareza. Pensei: é isso, é isso que eu quero fazer.”
Publicitária de formação, Leisi nasceu na Ucrânia e cresceu em Cabo Verde, para depois viver seis anos em Fortaleza, no Brasil, onde estudou Publicidade e Propaganda. O macramé foi a sua primeira paixão dentro do mundo das artes manuais, um interesse que surgiu por volta dos 22 anos. Fascinada pelo artesanato, ela se sentia atraída pela ideia de criar peças que as pessoas pudessem levar consigo ou usar para decorar os seus espaços. “Gostava da ideia das pessoas carregarem comigo no dia a dia. Era algo íntimo e, ao mesmo tempo, coletivo.”
Mas o regresso a Cabo Verde, provocado pela pandemia da COVID-19, trouxe consigo uma nova necessidade: viver com mais tranquilidade, perto da família, e reencontrar um caminho mais significativo. Foi nesse contexto que a cerâmica apareceu — ou reapareceu — com força. Ela lembra-se com carinho do momento em que conheceu o ateliê Olaria Alcides Mendonça, em São Domingos, onde começou a trilhar o seu percurso com o barro em 2022. Inicialmente experimentava em casa, com vídeos no YouTube, até encontrar um espaço físico e um mestre com quem pudesse crescer. “O barro começou a fazer parte do meu dia a dia, da minha rotina, da minha forma de pensar e sentir.”
O processo, segundo ela, não foi imediato nem fácil. “Sou muito perfeccionista, controladora, e a cerâmica ensina-nos a lidar com o erro, com a imperfeição.” Ela conta que, por mais perfeita que uma peça pareça, ela pode quebrar a qualquer momento — e que isso lhe ensinou, aos poucos, a desapegar. Foi também uma maneira de se descobrir como mulher, criadora e microempreendedora. “A cerâmica foi me transformando. Trouxe-me para o presente, obrigou-me a aceitar que o resultado nem sempre será o que idealizei.”
O processo, segundo ela, não foi imediato nem fácil. “Sou muito perfeccionista, controladora, e a cerâmica ensina-nos a lidar com o erro, com a imperfeição.” Ela conta que, por mais perfeita que uma peça pareça, ela pode quebrar a qualquer momento — e que isso lhe ensinou, aos poucos, a desapegar. Foi também uma maneira de se descobrir como mulher, criadora e microempreendedora. “A cerâmica foi me transformando. Trouxe-me para o presente, obrigou-me a aceitar que o resultado nem sempre será o que idealizei.”
Com o tempo, percebeu que queria fazer disso um modo de vida. Criou uma conta no Instagram em agosto de 2023, depois de muitos incentivos dos amigos, e começou a partilhar o processo, os bastidores, os erros e as vitórias. “No início, resisti muito. Tinha medo do julgamento, do que iam pensar. Mas aos poucos fui ganhando confiança.” O público respondeu com entusiasmo e carinho. As pessoas começaram a se interessar pelas peças, a querer comprá-las, a fazer perguntas, a dar feedback. Isso fortaleceu-lhe a vontade de continuar.
No ateliê onde trabalha, ela encontra a maior parte da inspiração. A colaboração com o professor Alcides Mendonça é parte fundamental do processo criativo. “Discutimos as ideias, os limites, as possibilidades da cerâmica. Aprendo muito com ele, e isso enriquece o meu trabalho.” Ela afirma que a sua parte preferida continua sendo o momento prático de moldar o barro na roda. “É quando me sinto mais conectada, mais viva.”
As suas peças carregam uma estética simples, orgânica, natural. Muitas vezes deixa o barro cru, sem esmalte, revelando a textura da matéria-prima. Crescida entre as ruas coloridas de Fortaleza e agora rodeada pela terra cabo-verdiana, Leisi prefere um estilo que reflita o essencial. Usa barro extraído em Assomada e São Pedro, misturado manualmente, sem grande pretensão de nomes técnicos. “Gosto do que é direto, do que nasce das mãos sem filtros.”
Ela reconhece que há muitos desafios em trabalhar com cerâmica em Cabo Verde. A dificuldade em encontrar ferramentas, materiais diversos, fornos de alta temperatura, tudo isso torna o percurso mais lento e exigente. Mas isso também lhe ensinou a valorizar cada etapa do processo. “Trabalhar com barro é, por si só, um exercício de paciência. Não dá para apressar.”
Apesar disso, Leisi vê na cerâmica um enorme potencial de impacto cultural e comunitário. Para ela, esta arte pode ajudar a preservar tradições, valorizar a produção local e tornar a criatividade acessível. “Oficinas, colaborações com marcas, projetos educativos — tudo isso aproxima as pessoas da arte. Não precisa ser algo distante, reservado só para artistas profissionais.”
Leisi fala da cerâmica com paixão, mas também com cuidado. Ela sabe que o seu trabalho vai muito além das peças físicas. “Não se trata só de criar objetos bonitos. É sobre criar presença. É sobre ensinar o valor do processo, do erro, da tentativa.” Em tempos de inteligência artificial, consumo acelerado e produção em massa, ela acredita que o artesanato recupera o valor do humano, do feito à mão, do único.
Muitas vezes, confessa, ainda se frustra com as peças que não saem como queria. “Fico triste, às vezes nem consigo tocar no barro. Mas aprendi a olhar para esses momentos como reflexo do meu estado interior. Se não estiver bem, o barro sente.” Para ela, o trabalho com a cerâmica é uma forma de autoconhecimento. “Sou uma mulher ansiosa. Sempre fui. Mas através do barro, aprendi a estar no presente, a respirar fundo, a aceitar que nem tudo precisa ser perfeito.”
Cada peça moldada é uma extensão do seu momento emocional. Por isso, não consegue reproduzir exatamente os mesmos objetos — e isso, diz ela, é o que torna o trabalho tão especial. “Brinco muito com os projetos. Sinto orgulho quando termino um vaso e vejo que ele é único, cheio de autonomia. Isso me realiza.”
Ao falar do futuro, Leisi revela sonhos ambiciosos e possíveis. Pretende criar um café-ateliê colaborativo, onde as pessoas possam se encontrar, experimentar, criar e tomar um café com calma. Quer expandir o projeto da Leisi Gramazda Cerâmica para além do Instagram, atingir novos públicos, colaborar com outras áreas. “Tenho planos maiores. Quero ver até onde isso me leva.”
No fim, deixa uma mensagem para quem sonha em trabalhar com arte: “Sejam curiosos. Reservem tempo para conhecer o barro, para brincar com ele. Entrem em contacto com outros artistas. Usem as redes sociais como aliadas, não como fardos. E não tenham medo de parecerem infantis — é essa criança interior que vos vai guiar na criação.”
A história de Leisi é, no fundo, uma história de retorno. Às raízes, ao corpo, ao tempo natural das coisas. Entre imperfeições e experimentações, ela vai moldando não só o barro, mas também uma forma de viver mais atenta, mais sensível e mais leve.
Anícia Cabral – Correspondente