Entrevista exclusiva ao autor do documentário “Quem matou Shireen?”: “queríamos contar a história dela… e tentar encontrar alguma responsabilização”

Shireen Abu Akleh, jornalista da Al Jazeera, foi assassinada no dia 11 de Maio de 2022 por um soldado Israelita, enquanto fazia uma reportagem em Jenin, na Cisjordânia. Desde então, vários processos de investigação foram iniciados, tanto pelas autoridades israelitas como pelo executivo norte-americano de Joe Biden, sob a pressão de grupos de jornalistas e ativistas, que exigiam justiça.

Contudo, no decurso destes anos, nunca foram apuradas responsabilidades e o processo de investigação foi eventualmente interrompido.

Porém, uma equipa de jornalistas independentes, sob o financiamento da plataforma noticiosa Zeteo, decidiu efetuar a sua própria investigação e, em 2025, conseguiu não só obter dados incriminatórios suficientes que provam a responsabilidade do exército Israelita na morte de Shireen mas também a identidade do assassino.

O processo de investigação jornalístico materializou-se num documentário de 40 minutos intitulado “Quem Matou Shireen?”, agora disponível na Internet através da página oficial da Zeteo.

A e-Global entrevistou um dos diretores-executivos do filme, Dion Nissenbaum, para falar em detalhe sobre a produção do documentário. Nissenbaum foi correspondente internacional do Wall Street Journal e esteve sediado em Beirute, Jerusalém, Istambul, Cabul e Bruxelas nas últimas duas décadas. Nissenbaum foi também finalista do Prémio Pulitzer de reportagem internacional duas vezes.

A entrevista foi feita por chamada telefónica com Nissenbaum (na sua residência em Texas) pelo nosso correspondente João Sousa, a partir do sul do Líbano.

JS: Donde partiu a ideia inicial de fazer este documentário e porquê? E, na altura, o caso do assassínio de Shireen foi considerado definitivamente encerrado por Israel e pelos EUA?

DN: Eu estava a cobrir o Médio Oriente para o Wall Street Journal quando Shireen foi morta, e a minha colega Fatima AbdulKarim, também a trabalhar para a mesma publicação, era amiga e colega de Shireen. Ela cobriu o seu assassínio no terreno e mais tarde esteve também presente no funeral onde a polícia Israelita atacou o caixão. No decorrer destes acontecimentos, eu queria que o Wall Street Journal fizesse uma investigação independente como outras publicações fizeram, como a CNN e o Washington Post e o New York Times, mas a nossa redacção acabou por não o fazer.

Eu estava tão frustrado com a forma como a história foi coberta, toda a desinformação israelita a culpar os palestinianos no início, e até o relatório de investigação final deles era uma salada de palavras, uma desculpa que não assumia realmente a responsabilidade, embora fosse bastante claro que o responsável pelo assassínio tinha sido um soldado israelita.

E nós apenas queríamos contar a história dela de forma clara e precisa é tentar encontrar alguma responsabilização, porque o processo do FBI ainda está tecnicamente aberto, mas o governo Israelita disse publicamente que não cooperaria, o que efetivamente frustrou a investigação. E como ninguém estava a fazer nada para apurar responsabilidades, queríamos fazer este projeto.

Inicialmente, eu e a Fatima propusemos esta história em formato de podcast, e mais tarde apresentámo-lo ao Mehdi Hasan (jornalista e fundador da plataforma de notícias independente Zeteo), e eles disseram: “Bem, gostaríamos de vos financiar, mas poderiam fazê-lo como um documentário em filme, um documentário de investigação?”. E, claro, dissemos que sim.

JS: Qual foi o momento crítico em que você e a Fatima decidiram que deveriam ir em frente com o projeto do documentário?

DN: Nós desde o início queríamos fazer uma reportagem de investigação sobre o assunto e um podcast sobre o assassínio da Shireen. Mas entretanto outras notícias e outros assuntos surgiram. E nós também estávamos ocupados com outros temas, por isso demorou um pouco para voltarmos e encontrar alguém para financiar o filme. Fomos a vários sítios para tentar arranjar financiamento mas todos disseram que não.

Pessoalmente não lidei muito com propostas diretas para outros sítios. Como disse, inicialmente estruturámo-lo como um podcast. Então, fomos a várias plataformas diferentes de podcast, e acho que não obtivemos qualquer resposta. A indústria de podcasts em si mudou um pouco, e, o que nos disseram é que a maioria dos lugares que oferecem podcasts estava mais à procura de programas semanais regulares com a abordagem do tipo Joe Rogan ou Pod Save America, em vez de uma série única, de seis ou oito partes. Estas não vendem muito mais.

JS: Iriam em frente com este documentário mesmo se não houvesse financiamento? Ou correriam o risco de não o produzir?

DN: Não, não o conseguiríamos fazer sem financiamento.

JS: E como é que foram iniciadas as negociações com a Zeteo para arrancar com o documentário?

DN: Nós inicialmente apresentámos o projeto à Zeteo e ao Mehdi. A equipa dele discutiu e ponderou a proposta durante uns meses. Eles já tinham feito aquele primeiro documentário chamado “Israel’s Reel Extremism”, com o Inigo Gilmore. Ele fez uma curta-metragem sobre todos os soldados israelitas que estavam a documentar os seus crimes no Tiktok. Esse projeto funcionou bem para eles, e dado que a Zeteo queria fazer um segundo filme, perguntaram-nos se, em vez de fazer um podcast, faríamos um documentário.

“Este é um segredo bem guardado em Israel.”

Dion Nissenbaum

JS: Que tipo de obstáculos tiveram no processo de produção?

DN: O maior desafio foi o facto de eu e o realizador (Conor Powell) estarmos sediados nos EUA e estarmos a tentar encontrar este soldado Israelita. Como não tínhamos tempo livre para estar em Israel, seria complicado localizar o assassino de Shireen. Este é um segredo bem guardado em Israel. Às vezes era mais fácil para mim fazer com que as autoridades Israelitas falassem sobre os seus ataques clandestinos ao Irão do que fazer com que alguém falasse sobre o soldado que matou Shireen, e tão poucas pessoas sabiam o seu nome.

Portanto, era uma agenda muito apertada para nós, e na verdade, ficámos em Israel e na Cisjordânia apenas durante uns 10 dias, onde fizemos a maior parte da pesquisa e, felizmente, conseguimos encontrar uma rede de soldados israelitas que conheciam o assassino. Essa rede estava fora da cadeia de comando do exército Israelita (sob o qual ninguém estava autorizado a falar connosco).

Mas esse foi o maior desafio: encontrar o caminho, a raiz, até ao soldado. Tínhamos muitas portas fechadas. Nenhum oficial norte-americano sabia o nome do soldado que matou Shireen. Este seria sempre um ponto de acesso fácil para alguém como eu, com muitas fontes Americanas, mas ninguém tinha o nome. O exército Israelita não cooperou. Portanto, encontrar a chave certa foi, penso eu, o nosso maior desafio.

JS: O contato inicial com essa rede foi feito quando ainda estavam nos EUA ou foi feito exclusivamente durante esses 10 dias em Israel?

DN: Nós fizemos contacto com eles antes de chegarmos a Israel.

JS: Então, a decisão de ir até Israel só foi tomada depois de terem confirmado reunirem-se com os membros desta rede?

DN: Não, na verdade, não. Nós não tínhamos a certeza se conseguiríamos essas reuniões. Então, contactámos esta rede e referimos aquilo em que estávamos a trabalhar, e acho que quatro dos membros dessa rede concordaram em falar connosco, com uma condição ou outra.

Para além disto, estávamos a planear uma viagem a Israel porque queríamos ir a Jenin e falar com o produtor de Shireen, o Ali Al Samoudi. E queríamos falar com alguns ex-oficiais Israelitas que concordaram em conversar connosco e visitar o local do crime. Assim, fomos sabendo exatamente o que estes soldados sabiam e se iriam cooperar.

JS: Qual a razão para tanto sigilo por parte das autoridades israelitas em esconder a identidade do assassino?

DN: Não tenho uma resposta clara para isso. Acho que o governo israelita estava a proteger este soldado. Como dizemos no documentário, houve uma avaliação americana de que a Shireen foi morta intencionalmente, e o oficial americano com quem falei acreditava que o soldado poderia ser condenado por homicídio voluntário num tribunal.

E depois, poderia haver a perspectiva de que o FBI tentaria processar um soldado israelita por assassinar uma cidadã americana (obviamente uma posição altamente politizada e polarizadora). Portanto, penso que Israel fez tudo o que estava ao seu alcance para garantir que um dos seus próprios soldados não fosse acusado e investigado pelo FBI por homicídio.

JS: Houve algum momento em que a produção do documentário esteve em risco de parar?

DN: Não, nunca houve um momento em que corremos o risco de não ter o filme produzido. Nós tínhamos um cronograma rápido, e o Mehdi queria apresentar o filme em Nova Iorque como parte da festa do primeiro aniversário da Zeteo, por isso tínhamos um prazo curto para terminar. Ainda conseguimos algum financiamento extra no final para completar a pós-produção.

JS: Qual foi o processo de seleção dos inquiridos e quão difícil foi encontrar e aceder a estes contatos importantes?

DN: O sítio onde tivemos mais portas fechadas foi em Washington, com funcionários do governo de Biden. Tentámos falar com pessoas na Casa Branca, no Departamento de Estado, no FBI, mas ninguém do governo que trabalhou neste processo estava disposto a aparecer para falar connosco perante as câmaras. Portanto, tivemos muitas portas fechadas com os EUA e com o exército israelita também. Nós pedimos-lhes uma entrevista e eles recusaram-se a participar.

Mas depois consegui falar com um antigo funcionário Israelita, o Conselheiro de Segurança Nacional do Primeiro-Ministro, que era uma fonte que eu conhecia há algum tempo e ele estava disposto a colaborar. Para além dele, encontrámos um antigo funcionário do Departamento de Estado, Andrew Miller, que trabalhou nisto, que estava fora e, portanto mais disponível para falar.

Encontrámos também um cineasta israelita que conheceu o soldado que matou Shireen algumas semanas depois após o assassínio dela. Ele tinha organizado um encontro não oficial e não autorizado com este soldado, que os militares toleraram discretamente. Ele não revelou o nome, e tinha uma balaclava na cara e fez uma breve descrição do que aconteceu naquele dia. Acabámos por não usar este depoimento porque encontrámos soldados Israelitas que conheciam o assassino e que nos podiam contar mais.

É um documentário de apenas 40 minutos e só se pode ter um certo número de pessoas no filme antes de este ficar meio cheio. Então tivemos de limitar o número de pessoas que teríamos na câmara.

“E ele disse logo “a primeira coisa que precisas de saber é que este soldado está morto.””

JS: Houve momentos durante a produção do documentário, em que ficaram surpreendidos com a forma como certas informações muito críticas e sensíveis vos chegaram? E que tipo de técnicas jornalísticas usaram para fazer com que as pessoas baixassem a guarda e falassem abertamente? Por exemplo, o amigo do assassino simplesmente a abrir-se e a revelar a sua identidade?

DN: Sim, esta, obviamente, foi a entrevista mais surpreendente e reveladora para nós. Estávamos a tentar encontrar um soldado israelita e a primeira informação que obtivemos sobre o assassino, foi que tinha sido morto embora Gaza no início da guerra com o Hamas. Fizemos várias pesquisas para analisar sobre os soldados israelitas da unidade Duvdevan que estava em Jenin nesse dia. Havia cerca de 10 ou 12 soldados da unidade Duvdan que tinham sido mortos em Gaza. E nenhum deles correspondia ao soldado que procurávamos; ou eram demasiado jovens, pelo que não estariam na unidade quando Shireen foi morta, ou eram médicos, o que não se coadunava com o facto de serem atiradores que estariam em posição de a matar.

E começámos a entrevista com o nome de um indivíduo, um soldado que tinha sido morto em Gaza, que pensámos que poderia ser o assassino de Shireen. Iniciámos a entrevista com esta pessoa, e estávamos casualmente a falar primeiro sobre os ataques de Duvdevan e perguntas gerais sobre o que torna esta unidade única, e mais tarde mencionámos o assassínio de Shireen e simplesmente perguntámos “Qual é a sua opinião sobre o que aconteceu naquele dia?”. E ele disse logo “a primeira coisa que precisas de saber é que este soldado está morto.” Por isso, tivemos logo a confirmação de que o assassino de Shireen tinha morrido.

Eu respondi que não o nome do soldado em questão seria Lior, ao que o entrevistado respondeu “Lior? Não, não era Lior; era Alon Scagio.” O interessante é que Scagio, como se vê no filme, foi transferido de Duvdevan para uma unidade diferente, depois de Shireen ter sido morta, por isso, quando se olha para o seu obituário, não há menção à unidade Duvdevan, e que ele foi morto em Jenin em vez da Cisjordânia.

Ainda não tínhamos a certeza se era a pessoa certa, e quando fomos pesquisar mais, pudemos ver no seu obituário que ele esteve na Duvdevan, tendo se juntado à unidade e sido destacado para a Cisjordânia durante os meses em que Shireen foi morta, e que foi transferido da unidade alguns meses depois de Israel ter concluído a sua investigação. Por isso, conseguimos, de certa forma, alinhar o seu historial militar também com o assassínio de Shireen. Portanto esta foi a principal revelação em todas as nossas entrevistas.

JS: Este foi, portanto, o ponto crucial na produção do filme. Sem este testemunho e a revelação explícita do nome do assassino de Shireen, o documentário teria sido contado de outra maneira?

DN: Sim, das pessoas que trabalharam no filme, eu era o único que realmente acreditava que conseguiríamos encontrar o assassino de Shireen. Nem a equipa da Zeteo nem o Medhi Hasan acreditavam que iríamos encontrar a identidade do assassino.

Nessa eventualidade, o enredo teria sido diferente e construído em torno da impossibilidade de desenterrar este segredo e obter qualquer responsabilização. Portanto, teria sido um filme diferente. Honestamente, não acho que teria sido um filme tão satisfatório ou revelador se não o tivéssemos encontrado.

JS: Como é que a vossa equipa se sentiu quando souberam que o assassino tinha morrido e que portanto não o poderiam entrevistar?

DN: Acho que para nós, e também para a família de Shireen há um misto de emoções. Há uma certa ironia em ele ter sido morto em Jenin depois dos soldados israelitas nos terem dito que foi ele quem matou Shireen também em Jenin. Há também um certo carácter definitivo; dá-nos um desfecho.

Se ele estivesse vivo, o nosso esforço teria sido tentar localizá-lo e falar com ele. E eu acho que teria sido quase impossível fazê-lo falar. Ele serviu em Gaza e potencialmente poderia estar em Gaza nas altura em que o tentaríamos contactá-lo. Nesse caso, não haveria qualquer motivo para ele cooperar connosco. Por isso, não tenho a certeza se teríamos obtido alguma resposta caso ele ainda estivesse vivo.

O único aspeto interessante disto, e não está realmente no filme, é que na manhã da exibição do documentário, liguei à mãe dele para a avisar que o filme iria estrear e que iríamos mencionar o nome do filho dela como o assassino de Shireen. Eu pensei que a família soubesse porque Israel é uma sociedade muito pequena. O pai dele é polícia; a sua irmã também serviu no exército israelita. E quando lhe liguei, ela não fazia ideia de que o filho estava envolvido no homicídio de Shireen. E eles, através do exército israelita, pouco antes do filme estrear, fizeram um pedido para que não revelássemos o nome dele ou o mencionássemos, o que não podíamos fazer naquele momento.

Mas fiquei surpreendido que, pelo menos a mãe dele não soubesse. Não sei se o pai sabia, ou se a irmã sabia, mas a mãe não tinha a certeza.

“Estes foram os dois momentos durante as filmagens em que corremos algum tipo de risco, mas foi bastante moderado.”

Dion Nissenbau

JS: Até à primeira exibição do documentário, havia alguma peça noticiosa sobre a identidade de Scagio?

DN: O nome Alon Scagio era venerado pelo exército Israelita como um herói. A história que foi contada sobre a sua morte foi que a sua unidade tinha sido atingida por uma bomba na estrada e várias pessoas ficaram feridas. Nessa altura, Scagio correu de um veículo para outro para resgatar 12 ou 14 soldados. E que ele próprio foi morto, o único morto naquele dia por uma segunda bomba na estrada. Portanto, o seu nome estava na comunicação social, mas apenas pelo incidente que causou a sua morte e não por qualquer associação ao assassínio de Shireen, dois anos antes.

JS: Se Scagio ainda estivesse vivo e disponível para ser entrevistado, que questões lhe colocariam?

DN: Bem, a principal questão que precisava de ser respondida seria: em que é que ele estava a pensar quando disparou aquela bala. Até porque a avaliação inicial dos EUA foi que ele deveria ter sido capaz de concluir que ela era jornalista por causa do colete e que, portanto, não era uma combatente.

Queríamos também saber o que é que ele estava a pensar, o que é que viu naquele momento fatídico. Falámos com instrutores militares israelitas e americanos que nos disseram que não era um procedimento adequado para ele abrir fogo sobre ela a 200 metros de distância. Na posição em que ele se encontrava, num veículo blindado fechado, sem receber tiros da zona onde Shireen estava, ele teria pelo menos quatro ou cinco segundos para determinar se a jornalista era ou não uma ameaça.

Mas ele não seguiu este tipo de procedimento, por isso, gostaríamos de saber, porque é que ele disparou contra Shireen. E também o que é que, para ele, constituiria uma ameaça.

A versão oficial Israelita indicou que Scagio identificou erradamente Shireen como uma militante e portanto disparou sobre ela. Mas os militantes não usam capacetes azuis. E muito poucos usam coletes à prova de bala.

Portanto, estas são questões importantes. E é possível que Scagio tenha eventualmente respondido a algumas delas quando terá prestado um depoimento aos aos seus superiores sobre o que aconteceu naquele dia. Porém, o governo israelita nunca divulgou o depoimento em questão.

JS: Scagio estaria, em algum momento ciente que tinha assassinado uma jornalista?

DN: Bem, a investigação militar israelita indicou que Scagio tinha informado rapidamente os seus superiores que poderia ter morto uma jornalista. Mas no filme, o que soldado que falou connosco ficou com a impressão que Scagio naquele momento não percebeu realmente que tinha morto uma jornalista e que, na altura, estava mais preocupado em retirar a sua unidade de Jenin.

Portanto, ele só terá refletido sobre o incidente mais tarde. E essa é a questão: não sabemos bem o que ele estava a pensar naquele momento e logo a seguir, quando percebeu que podia ter matado uma jornalista. Estas ainda são respostas que precisam de ser obtidas.

JS: Houve algum momento durante as vossas reportagens em que correram riscos de segurança?

DN: Quando fomos para Jenin, durante uma operação militar no campo de refugiados, tentámos chegar ao local onde Shireen tinha sido morta. Mas a entrada estava encerrada pelas tropas israelitas. Portanto, foi um pouco arriscado. Não tínhamos coletes à prova de bala naquele dia, por isso não nos aventurámos muito perto de tiroteios. E a Cisjordânia é sempre um bocado arriscada.

Estávamos a voltar nessa noite, e encontrámos uma patrulha militar israelita aleatória que estava a tentar fechar uma estrada, e dispararam gás lacrimogéneo contra nós e vários outros carros para nos fazer voltar para trás. Estes foram os dois momentos durante as filmagens em que corremos algum tipo de risco, mas foi bastante moderado.

JS: Considera este documentário como um projeto bastante pessoal para si?

DN: Sim, foi um projeto definitivamente pessoal. Como jornalista, trabalhei nessas zonas de combate, e já estive exatamente em situações semelhantes, a usar o colete azul, a tentar abordar soldados israelitas. Acho que todos ficaram muito surpreendidos porque Shireen não era conhecida por ser uma pessoa ousada. Ela não corria riscos excessivos. Ela não se esquivava aos militantes para chegar aos soldados.

Era uma rua tranquila e segura no momento do seu assassínio. Algo que esperamos que o documentário transmita é a ideia de que Israel é agora considerado o país mais perigoso do mundo para repórteres, de acordo com o Comité para a Proteção dos Jornalistas, por causa de todos os profissionais de imprensa que os israelitas mataram em Gaza.

Exatamente em situações semelhantes, a usar o colete azul, a tentar abordar soldados israelitas. Acho que todos ficaram muito surpreendidos porque Shireen não era conhecida por ser uma pessoa ousada. Ela não corria riscos excessivos. Ela não se esquivava aos militantes para chegar aos soldados.

Era uma rua tranquila e segura no momento do seu assassínio. Algo que esperamos que o documentário transmita é a ideia de que Israel é agora considerado o país mais perigoso do mundo para repórteres, de acordo com o Comité para a Proteção dos Jornalistas, por causa de todos os profissionais de imprensa que os israelitas mataram em Gaza.

Temos várias pessoas no filme que defendem que a falha dos Estados Unidos em responsabilizar Israel pela morte de uma jornalista americana deu aos israelitas uma sensação de impunidade. E isso levou à morte de mais jornalistas palestinianos em Gaza, mas também de americanos na Cisjordânia, desarmados.

Houve uma activista turco-americana, Ayşenur Ezgi Eygi, que foi baleada e morta por um soldado israelita numa situação semelhante. Ela estava a 200 metros dos soldados. Na verdade, não havia pessoas armadas por perto no momento, e o soldado israelita abriu fogo, supostamente tentando ferir alguém perto dela, e acabou por matá-la. Certo.

E, mais uma vez, este é outro incidente em que temos de questionar porque é que aquele soldado abriu fogo em primeiro lugar, mesmo que ele estivesse a tentar visar outra pessoa que estava desarmada e não que era uma ameaça direta. Por isso, temos mesmo que questionar quais são as regras de empenhamento.

“…há algumas pessoas que conheci que foram mortas pelas forças israelitas.”

JS: Você conhecia pessoalmente Shireen? Ou outro jornalista morto pelas forças israelitas, especialmente desde o início da guerra em outubro de 2023?

DN: Não, nunca conheci Shireen. Para mim, o incidente que me ficou na memória foi o assassínio de um jovem operador de câmara palestiniano da Reuters chamado Fadel Shana’a em 2008, quando eu estava sediado em Jerusalém. Era um amigo que montou o seu tripé no cimo de uma colina, a 700 metros de um tanque israelita que tinha vindo para uma pequena incursão numa operação militar. E o tanque abriu fogo com um projétil de flechette (que, quando é disparado, tudo se fragmenta em pequenos dardos). Fadel literalmente filmou o seu próprio assassínio.

Outras pessoas ficaram feridas e, nesse incidente, o exército israelita absolveu a unidade de qualquer culpa, dizendo que os soldados tinham uma visão realista de que aquele tripé e a câmara poderiam ter sido uma arma. E depois ninguém foi responsabilizado. Isto foi há 17 anos.

Entretanto, vimos incidentes desta natureza acontecerem novamente. Houve o assassínio no sul do Líbano de Issam Abdallah, da Reuters. Este foi um incidente muito semelhante, sobre o qual Israel ainda não divulgou quaisquer conclusões, quase dois anos depois. Eu não o conhecia, mas, claro, conhecia colegas dele em Beirute. Conheço também o jornalista Palestiniano Wael Al-Dahdouh, da Al Jazeera, cujo filho foi morto e cuja mulher estava em Gaza. Portanto, há algumas pessoas que conheci que foram mortas pelas forças israelitas.

JS: Portanto, o assassínio de jornalistas por parte de Israel não é um fenómeno recente. Como vê esta prática regular dos soldados israelitas?

DN: Para mim, uma das coisas mais preocupantes é que a principal porta-voz internacional do exército Israelita publicou um tweet no ano passado, no qual dizia que tinham como alvo alguns jornalistas em Gaza, que escreviam para órgãos de notícias afiliados a grupos militantes palestinianos, e os tinham como alvo direto, mesmo que não fossem militantes armados, e chamavam-lhes, entre aspas, “propagandistas de combate”, um termo novo usado para justificar o ataque direto a jornalistas.

O porta-voz internacional do exército Israelita chegou a afirmar que usar um colete azul não transforma um terrorista num jornalista. Isto envia uma mensagem muito clara aos soldados Israelitas de que ver alguém com um colete azul não significa que se deva considerá-lo um não-combatente. E para os jornalistas, significa que usar o colete azul com a palavra “Imprensa” já não oferece proteção quando se está perto do exército Israelita.

Agora é preciso basicamente operar sob a suposição de que os vão considerar um alvo, e isso é uma evolução preocupante na filosofia operacional de Israel, que está a dizer abertamente que um colete azul com a palavra “imprensa” não oferece essencialmente qualquer proteção aos jornalistas. Eu gostaria de ver Israel a dissuadir esta ideia e garantir aos jornalistas honestos que o exército Israelita lhes dará a proteção que devem, segundo o direito internacional.

JS: Está satisfeito com o resultado final do documentário? Teria feito algo diferente relativamente à produção do filme e respetivo lançamento?

DN: Penso que estamos satisfeitos com a recepção e com o resultado do filme. É o meu primeiro documentário, por isso é claro que há muitas coisas que provavelmente faríamos de forma diferente, e de formas diferentes, se tivéssemos mais tempo e recursos para contar a história. Mas em estamos muito satisfeitos com a recepção e a atenção que tem recebido.

A Zeteo é uma das poucas plataformas que está disposta a financiar e exibir este tipo de histórias neste momento. Por isso, estamos gratos pelo apoio deles. Contamos fazer exibições em Washington, Londres e noutros lugares. Ainda estamos a tentar amplificar a mensagem.

“…a desinformação distorce a compreensão das pessoas…”

JS: O público em geral tem reagido positivamente ao conteúdo do documentário?

DN: Penso que, acima de tudo, temos recebido muitos comentários positivos por parte de jornalistas e de grupos de defesa dos jornalistas, sobre o facto de chamar a atenção para os riscos para repórteres em zonas de combate. Acho que é aí que estamos a ver o maior envolvimento por parte do público.

Neste momento, estamos num mundo onde as pessoas aceitam as suas próprias realidades, sejam elas baseadas em fatos ou não. Quando falei com a mãe de Alon Scagio e mencionei que, segundo os seus companheiros, ele tinha cometido o atentado que matou Shireen, ela disse: “Bem, ela estava entre terroristas”. E nem foi isso que a própria investigação militar israelita mostrou. E eu disse-lhe exatamente isso, e que ela não estava correta na sua perceção. A própria investigação militar israelita revelou que Shireen, mas a mãe de Scagio refutou este fato oficial. Ela não está disposta a aceitar qualquer informação que desvie da sua interpretação e do seu falso compreensão do nosso filme.

Nos media, todos nós estamos a lidar com a forma como, de um modo geral, a desinformação distorce a compreensão das pessoas, e uma vez que têm uma impressão distorcida e falsa de incidentes como este, as pessoas estão relutantes em mudar de rumo.

JS: Houve algum órgão de comunicação social ou instituição oficial que contestou as descobertas e conclusão da vossa investigação?

DN: Tivemos, diria, uma ligeira resistência às nossas conclusões. Falámos com os militares israelitas antes do filme estrear e tivemos algumas discussões confidenciais com eles sobre isso. A declaração deles, divulgada cerca de uma hora antes do filme estrear, dizia que os oficiais israelitas nunca chegaram a uma conclusão definitiva sobre qual o soldado que matou Shireen. Eles admitiram que sim, que o exército tinha disparado contra Shireen.

E isto foi, na verdade, uma mudança na sua posição, porque quando divulgaram a investigação final em 2022, o general que supervisionou a o processo disse explicitamente que tinha falado com o soldado que disparou os tiros devido a um erro. Depois, na própria declaração dos militares israelitas, nunca tinha sido admitida a conclusão definitiva de que um soldado do seu exército disparou os tiros; disseram que havia apenas uma grande probabilidade de um soldado israelita ter morto Shireen. Então, interpretei esta afirmação como um jogo de semântica, onde eles estavam meio a brincar com a verdade, provavelmente para tentar amenizar um pouco o golpe para a família de Shireen. E pediram a outras publicações que não publicassem o nome do soldado.

De um modo geral, os meios de comunicação israelitas acederam a este pedido militar. Vi apenas um artigo em inglês no Times of Israel que mencionava o documentário. Outros órgãos Israelitas, como o Haaretz, considerado o jornal mais esquerdista de Israel, nem sequer noticiaram o assunto, o que pareceu ser uma deferência para com os desejos dos militares israelitas.

JS: Dada a sensibilidade do tema abordado no vosso documentário, há riscos da vossa equipa encontrar dificuldades em trabalhar e entrevistar oficiais Israelitas em projetos futuros?

DN: Até agora, felizmente, não recebemos nenhuma reação significativa e preocupante do governo israelita ou das forças armadas ou do governo dos EUA. Mas para já, não saberei a resposta a esta pergunta até voltar a Israel e ver o que acontece quando tentar entrar no país e se se recusam a deixar-me entrar por causa deste filme que fizemos, ou se me vão tentar questionar-me na ida ou na volta.

Eu trabalho com as forças armadas israelitas há duas décadas e penso que tenho uma boa relação com eles, pois consideram-me um repórter honesto que tenta sempre obter os factos e sem agenda definida. Por isso, mesmo fazendo o filme, acho que mantive essa relação com eles, mas teremos de ver. É como se o júri ainda não se tivesse pronunciado sobre isto.

JS: O que se pode dizer sobre a cumplicidade dos EUA neste processo e impunidade dada a crimes desta ordem?

DN: Nesta área, penso que, para mim, a comparação interessante é a forma como os EUA reagiram ao assassinato do jornalista Saudita Jamāl Aḥmad Khāshqujī, que foi morto num consulado saudita em Istambul. Ele era colunista do Washington Post e portador de um cartão verde norte-americano. As agências de informação do governo dos EUA e a CIA desenvolveram a sua própria avaliação sobre o papel do líder saudita, Mohammed bin Salman Al Saud, no assassínio de Khāshqujī. Joe Biden, que era o candidato presidencial na altura, prometeu tratar a Arábia Saudita como um estado pária. O governo norte-americano fez uma lista para interditar a entrada no EUA a vários oficiais sauditas, bloqueando-os especificamente de entrar no país.

E, no entanto, não se viu nada disto acontecer com Shireen, que é cidadã norte-americana. O FBI queria fazer uma investigação e Israel rejeitou o processo publicamente e recusou-se a cooperar. Não sei se a CIA esteve ativamente envolvida. Esta foi uma das coisas preocupantes para nós; Shireen era cidadã americana, e não viu o governo americano tomar uma posição em sua defesa e procurar responsabilização por ela como fez por Jamāl Aḥmad Khāshqujī.

JS: Acha que as provas apresentadas no vosso filme possam levar a novas investigações sobre o caso de Shireen? E estará o governo dos EUA disposto a revisitar o processo a partir de um ângulo diferente, dadas as revelações do documentário?

DN: Há tanta coisa a acontecer no mundo. Os EUA têm uma nova administração. Esperamos que haja pessoas como o senador Chris Van Hollen, que aparece no filme, e que tem tentado obter respostas e responsabilização relativamente ao assassínio de Shireen. É possível que ele possa tentar fazer avançar a história e procurar alguma responsabilização.

Seria possível a administração Trump divulgar o relatório dos EUA sobre o que aconteceu a Shireen, algo que a administração Biden se recusou a fazer. Porém, não temos qualquer indicação inicial de que estejam a prestar muita atenção ao caso dela ou que provavelmente o farão. A investigação do FBI ainda está tecnicamente aberta, mas, mais uma vez, não sabemos, sob a nova liderança do Departamento de Justiça, se isso seria uma prioridade para eles. Penso que provavelmente não. Por isso, penso que há caminhos estreitos para uma maior responsabilização.

JS: Acha que o seu documentário levará a novas investigações jornalísticas sobre outros repórteres assassinados por Israel?

DN: Não sei. Acho que há definitivamente histórias a fazer sobre todos os jornalistas que foram mortos em Gaza e o que lhes aconteceu. Imagino que existam outras histórias de assassinos.

O documentário Quem Matou Shireen?, realizado por Conor Powell e produzido por Dion Nissenbaum, Fatima AbdulKarim, Mehdi Hasan e Atia Abawi, encontra-se disponível online na página oficial da Zeteo e está previsto ser exibido brevemente em Londres e Washington.

João Sousa, a partir do Líbano

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