Empresária brasileira pretende levar cultura organizacional da “felicidade” aos Açores

Durante décadas, ambientes corporativos em diferentes partes do mundo estiveram marcados por frases que desmotivavam e desencorajavam a inovação, como a clássica e limitadora “você não é pago para pensar”. Hoje, num cenário empresarial cada vez mais global e exigente, surge uma nova consciência: a de que o bem-estar e a felicidade no trabalho não são apenas conceitos inspiradores, mas fatores determinantes para a produtividade, o engajamento e o sucesso das organizações.

Sónia Crisóstomo, empresária e líder da Ponte 360, é uma das vozes mais influentes nesse novo paradigma. Especialista em Felicidade Organizacional, Inteligência Emocional e Gestão Humanizada, esta profissional tem vindo a traçar um percurso internacional sólido, com destaque para a sua atuação em Portugal e no Brasil. Tem hoje nos planos desembarcar nos Açores, onde pretende auxiliar na construção de lideranças conscientes e estratégias de bem-estar corporativo adaptadas à realidade local. Com formação em Psicologia Positiva pelo Wholebeing Institute e Coach em Happiness and Well-being pela World Happiness Academy, Sónia traz consigo uma abordagem prática e culturalmente sensível, resultado da sua vivência em ambos os lados do Atlântico. “A minha visão de futuro para os Açores é ambiciosa e profundamente comprometida com a valorização humana e o desenvolvimento sustentável”, disse Sónia.

Nesta entrevista, abordamos o seu percurso, os maiores desafios das empresas na construção de ambientes de trabalho felizes e a ponte afetiva e profissional que tem construído entre Brasil, Portugal e os Açores, região pela qual manifesta um profundo compromisso com o desenvolvimento humano e sustentável. Através de escuta ativa, formação emocional e uma liderança mais empática, esta profissional defende que é possível transformar o ambiente laboral num espaço de crescimento, conexão e realização.

A felicidade no trabalho é hoje reconhecida como um pilar estratégico para o sucesso das organizações. De que forma a sua experiência internacional moldou a sua abordagem nesta área?

A minha vivência profissional permitiu-me acompanhar, ao longo dos anos, uma verdadeira revolução silenciosa nas relações de trabalho. Iniciei a minha carreira numa época em que o modelo de liderança predominante era autoritário, verticalizado e baseado no medo. Era o tempo dos “chefes”, e não dos líderes. Era comum ouvir frases como “você não é pago para pensar” — uma mentalidade que sufocava a criatividade, desestimulava a autonomia e limitava o desenvolvimento humano dentro das empresas. Essa mentalidade era reflexo de uma cultura mais ampla, presente inclusive nos lares e nas escolas, onde o diálogo era escasso e a hierarquia rígida. Felizmente, com o tempo, compreendi que liderar era muito mais sobre inspirar e escutar do que sobre comandar. Passei a adotar um estilo de gestão centrado nas pessoas, e os resultados começaram a aparecer naturalmente: equipas mais engajadas, entregas com mais qualidade e times coesos, movidos pelo senso de pertencimento e pela valorização de suas singularidades. A minha trajetória passou por diferentes regiões do Brasil, cada uma com a sua própria cultura e forma de trabalhar — do calor humano do Norte ao pragmatismo do Sul. Essa diversidade deu-me uma base rica para lidar com diferentes perfis, expetativas e modos de pensar. Mais tarde, a minha atuação em empresas israelenses trouxe novos aprendizados: a convivência com culturas mais secas, pragmáticas e diretas exigiu de mim uma ampliação do olhar e da escuta. Mesmo em ambientes mais austeros, sempre procurei preservar espaços de leveza — como o hábito de tomar um café juntos antes do expediente ou almoçar em grupo. Pequenos gestos, mas com grande impacto no clima organizacional. Com isso, compreendi que a felicidade no trabalho não é fruto de grandes eventos ou discursos motivacionais, mas da construção cotidiana de vínculos verdadeiros, respeito mútuo e equilíbrio entre vida pessoal e profissional — independentemente do país ou cultura em que se esteja.

Trabalhou em vários países e contextos culturais distintos. Quais foram as principais lições que trouxe dessas experiências para aplicar em Portugal?

A convivência com diferentes culturas ensinou-me, antes de tudo, a importância da humildade e da escuta ativa. Ao chegar num novo país, não se pode agir como quem carrega respostas prontas ou fórmulas universais. É preciso reconhecer que cada lugar possui a sua própria história, os seus códigos, as suas dores e as suas riquezas. Portanto, o primeiro passo é observar, aprender e respeitar. Gosto de dizer que se trata de um “rapport cultural” — uma conexão que se estabelece quando priorizamos o entendimento do outro antes mesmo de expressar nossas próprias ideias. Essa escuta sensível não se restringe às interações interpessoais, mas se estende às estruturas legais, fiscais, administrativas e sobretudo às práticas de gestão de pessoas. O que funciona em um contexto pode ser ineficaz — ou até invasivo — em outro. Um bom exemplo disso está na forma de comunicar. O brasileiro é naturalmente expansivo, caloroso e informal. Costuma abraçar, tocar, chamar pelo nome com facilidade, como se estivesse diante de um amigo de infância. O português, por outro lado, tende a ser mais formal, contido e respeitoso do espaço do outro. Essa diferença pode gerar ruídos se não for compreendida com empatia. O que às vezes é percebido como frieza ou distância, é na verdade uma forma distinta — e legítima — de se relacionar. A lição que trago é clara: para criar conexões verdadeiras, é preciso abandonar o julgamento e praticar a curiosidade genuína. Quando isso acontece, somos capazes de construir pontes e não muros — e é exatamente essa PONTE que venho construindo entre o Brasil e Portugal, com especial carinho pelos Açores.

O que a motivou a apostar na expansão do seu trabalho para o mercado dos Açores? Há alguma característica especial nas empresas açorianas que a tenha atraído?

O meu trabalho como mentora em wellbeing e felicidade parte de uma convicção profunda: todos nós temos o direito de viver com plenitude, sentido e bem-estar. No entanto, nem sempre sabemos como alcançar esse estado, principalmente quando estamos presos a crenças culturais ou geracionais que nos limitam. Ao chegar a Portugal continental, percebi que havia um grande espaço para esse tipo de trabalho, não apenas nas grandes cidades, mas especialmente em regiões como os Açores, onde a beleza natural, a conexão comunitária e o estilo de vida mais equilibrado oferecem uma base propícia para iniciativas voltadas à felicidade. Vejo nos Açores não apenas um território de oportunidades, mas também um solo fértil para a construção de projetos transformadores — tanto para empresas quanto para pessoas. Há algo muito autêntico nas relações açorianas: um senso de proximidade, pertencimento e respeito pelas tradições, que pode — e deve — ser um diferencial na construção de ambientes de trabalho saudáveis. Ao mesmo tempo, é importante trazer ferramentas modernas, baseadas na psicologia positiva, na neurociência e nas melhores práticas internacionais de gestão de pessoas, para que as empresas locais possam prosperar sem perder sua essência. A minha motivação é essa: unir o que há de mais avançado no campo da felicidade corporativa com a riqueza cultural e humana dos Açores, criando experiências verdadeiramente transformadoras.

Que estratégias específicas pretende implementar nos Açores para promover ambientes de trabalho mais saudáveis e felizes?

Antes de propor qualquer solução, é essencial compreender que o bem-estar nas organizações não pode ser tratado com uma abordagem padronizada. Cada empresa possui a sua identidade, a sua cultura interna, o seu histórico e os seus desafios únicos. Por isso, o primeiro passo da minha atuação é sempre o diagnóstico — um mapeamento profundo das condições psicossociais que afetam o ambiente de trabalho. Nos Açores, pretendo implementar uma jornada personalizada, com etapas bem definidas: iniciaremos com escuta ativa e diagnóstico organizacional, seguido de sensibilização das lideranças, formações voltadas à inteligência emocional, comunicação não-violenta, cultura do feedback, empatia, gestão do estresse e saúde mental. Outro ponto central será a promoção de políticas de flexibilidade, liberdade com responsabilidade e rituais de pertencimento. Não se trata apenas de oferecer benefícios pontuais, mas de transformar a cultura organizacional em um ecossistema que favoreça o florescimento humano. Também acredito fortemente na valorização da liderança como alavanca de transformação. Líderes preparados emocionalmente, com repertório e sensibilidade, são capazes de multiplicar o bem-estar nas suas equipas. Nos Açores, quero ajudar empresas a formar essas lideranças conscientes, empáticas e alinhadas com os valores do século XXI.

A nível internacional, pode partilhar algum exemplo de boas práticas de promoção da felicidade laboral que gostaria de replicar nos Açores?

Sim, há muitas boas práticas internacionais que podem ser adaptadas com sensibilidade à realidade açoriana. Um exemplo que considero muito pertinente é a abordagem ao modelo híbrido de trabalho no cenário pós-pandemia. Empresas no exterior que melhor se adaptaram ao retorno gradual ao escritório investiram fortemente na formação de lideranças para lidar com a complexidade das novas dinâmicas — seja no trabalho remoto, híbrido ou presencial. Perceberam que o desafio não era apenas logístico, mas relacional e emocional: como manter o vínculo, o senso de propósito e a coesão da equipe sem a presença física constante? A resposta passou por treinar gestores em escuta ativa, empatia digital, gestão por confiança e não por controlo, e, sobretudo, clareza de comunicação. Outro exemplo vem das empresas nórdicas, que priorizam jornadas mais curtas, pausas programadas, rituais de reconhecimento e momentos de silêncio — isso mesmo, o silêncio como prática de autorregulação e foco. São estratégias simples, mas profundamente eficazes para melhorar o clima, reduzir o stresse e aumentar a produtividade. Acredito que muitas dessas práticas podem ser integradas nos Açores, respeitando a cultura local e fortalecendo aquilo que a região já tem de melhor: a sua conexão humana, a sua tranquilidade e o seu senso de comunidade.

De acordo com a sua experiência, quais são os maiores obstáculos que as empresas enfrentam na construção de ambientes felizes? Como se podem ultrapassar?

O maior obstáculo, sem dúvida, é a falta de entendimento estratégico sobre o que é a felicidade no trabalho e o seu impacto direto nos resultados das empresas. Ainda existe uma visão reducionista de que investir em bem-estar é uma “gentileza corporativa”, um luxo dispensável ou uma despesa sem retorno mensurável. Isso é um equívoco. Estudos robustos na área da psicologia positiva, neurociência e gestão de pessoas já comprovaram que ambientes emocionalmente saudáveis reduzem significativamente o absenteísmo, aumentam a produtividade, melhoram a retenção de talentos e impactam positivamente nos indicadores financeiros. Outro obstáculo está na comunicação interna deficiente. Muitas empresas tentam implementar programas de bem-estar sem antes preparar suas lideranças para sustentar essas iniciativas com coerência e consistência. Sem líderes preparados, qualquer ação se torna pontual e pouco eficaz. Nos últimos anos, especialmente após a pandemia da COVID-19, notei também uma crescente dificuldade de adaptação por parte das equipas. O isolamento social deixou marcas profundas: lacunas nas habilidades sociais, inseguranças emocionais, confusão sobre hierarquias e resistência a mudanças. Isso exige das empresas uma nova abordagem — mais humana, acolhedora e paciente. A solução está na educação corporativa continuada, na escuta real das equipes e na construção de uma cultura onde o bem-estar não seja um projeto isolado, mas parte do DNA da organização.

Acha que o conceito de felicidade no trabalho é compreendido da mesma forma nos Açores, em Portugal continental e nos países onde já trabalhou?

Cada contexto cultural traz uma lente diferente para o conceito de felicidade no trabalho. Nos Açores, percebo uma particularidade encantadora: há um forte senso de comunidade, uma convivência mais próxima entre as pessoas e uma valorização natural do equilíbrio entre trabalho e vida pessoal — algo que, em grandes centros urbanos, precisa ser constantemente lembrado e treinado. Enquanto que, em países como Israel ou nos grandes centros do Brasil, a felicidade no trabalho muitas vezes é associada a reconhecimento profissional, autonomia e crescimento rápido, nos Açores vejo que a busca por qualidade de vida, segurança emocional e bem-estar familiar ocupa um lugar central. Essa diferença de perspetiva é uma oportunidade maravilhosa. Porque significa que os Açores já possuem, culturalmente, uma base que favorece a implantação de políticas de felicidade organizacional. O que falta, em muitos casos, é apenas dar nome a isso, criar indicadores, estruturar processos e capacitar lideranças para sustentar essa cultura de forma intencional e estratégica.

Que impacto espera ter nos Açores nos próximos anos e quais são os seus planos futuros para o desenvolvimento desta área na região?

A minha visão de futuro para os Açores é ambiciosa e profundamente comprometida com a valorização humana e o desenvolvimento sustentável. Quero contribuir para que os Açores sejam reconhecidos não apenas por sua beleza natural — que é extraordinária —, mas também por sua excelência em qualidade de vida no trabalho e inovação em bem-estar corporativo. Acredito que os Açores têm potencial para se tornarem um modelo europeu de gestão humanizada, atraindo não apenas turistas, mas também investidores, empreendedores e talentos interessados em viver e trabalhar em um ambiente que favoreça o florescimento humano. Para isso, por meio da PONTE360, empresa que lidero, estou a desenvolver programas de mentoria para empresas, formações em liderança positiva, projetos de intercâmbio empresarial entre Brasil e Açores e apoio à abertura de negócios na região. Junto a parceiros locais, oferecemos suporte jurídico, fiscal e de gestão para empresários brasileiros e de outras nacionalidades que desejam se estabelecer nos Açores — não apenas como um passo estratégico de internacionalização, mas como um reencontro com uma forma mais humana e feliz de viver e empreender. Mais do que trazer conhecimento, desejo plantar sementes. E acredito que os Açores estão prontos para florescer.

Ígor Lopes

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