Os grupos terroristas que actuam na região de Cabo Delgado, no norte de Moçambique, estão particularmente ativos desde há uns meses e têm deixado um rasto de medo e destruição por onde passam. Um professor primário, em testemunho enviado para a Fundação AIS em Lisboa, relata que os terroristas “queimam tudo” desde casas e Igrejas, mas também matam e raptam pessoas. Seis raparigas, suas alunas, foram levadas pelos insurgentes e o professor apela agora à sua libertação: “Queremos as crianças de volta…”
O diretor de uma escola pública numa aldeia no distrito de Chiúre, em Cabo Delgado, testemunhou o rapto de seis raparigas, crianças ainda, que frequentavam as suas aulas, durante uma passagem muito recente de terroristas pela zona, situada no norte de Moçambique.
Em mensagem de voz, enviada para a Fundação AIS em Lisboa, o professor primário, que pede para não ser identificado por questões de segurança, relata o que sucedeu quando a sua aldeia foi visitada por um grupo de terroristas, que reivindicam pertencer ao Daesh, a organização jihadista Estado Islâmico.
Vieram os insurgentes, levaram seis crianças, e essas seis crianças eram da segunda e da quinta classe. Eles vieram, levaram aquelas crianças e, [por causa disso], não temos mais crianças para ir na escola. As crianças têm medo por causa daqueles insurgentes, e não temos como trabalhar.”
No seu relato, enviado para a AIS através do padre Kwiriwi Fonseca, o professor descreve como os terroristas actuam, deixando normalmente atrás de si um rasto de medo, mas também de muita destruição. “Às vezes, eles vêm, queimam tudo, igrejas, e casas, e matam pessoas”, diz, fazendo um apelo: “Queremos aquelas crianças de volta para continuarem a estudar”.
Isabel, uma sobrevivente
Os terroristas aterrorizam as populações pois ninguém sabe exactamente o que vão fazer, quais as suas intenções. A aldeia de Eduardo Mondlane, situada também na região de Chiúre, foi atacada recentemente por homens armados que “degolaram, que mataram algumas pessoas”, relata o Padre Fonseca.
De passagem pela zona, o sacerdote escutou a história de uma jovem mulher, Isabel, “sobrevivente do ataque”. Os terroristas questionaram se ela era casada, e se tinha filhos e vinho para vender. “Eram 23 horas, vinham dois homens e me perguntaram onde é que eu vendo vinho e eu disse ‘eu não bebo’… Então, eles disseram: ‘leva esse dinheiro e vai lá comprar’. Mas eu neguei. E ainda me perguntaram se o meu marido vivia ali. Eu disse que ‘não, não me casaram’. E perguntaram quantos filhos tinha, ao que eu disse: ‘tenho dois filhos’. E eles foram embora.”
Para o Padre Kwiriwi Fonseca, Isabel foi “inteligente” nas respostas que deu e isso salvou-a. “Ela teve a bênção de Deus de não ter sido raptada e foi muito estratégica porque às perguntas que eram colocadas, ela respondia de forma inteligente e graças a Deus conseguiu escapar quando disse que já tinha duas crianças e era solteira. Eu acredito que eram elementos que [os terroristas] consideraram e por isso não foi raptada.”
Muitos cristãos já não têm onde rezar
Menos sorte tiveram outros habitantes da aldeia. Ainda segundo o sacerdote, “uma pessoa vizinha de Isabel, um homem, foi raptado e também nessa mesma aldeia foram mortas duas pessoas, dois homens, e foi raptado também um jovem que conseguiu escapar…”
Kwiriwi Fonseca, padre passionista da Diocese de Pemba, sublinha as palavras do professor e da jovem Isabel, até porque ele próprio tem já denunciado por diversas vezes a questão do rapto de crianças, em especial de raparigas, por parte dos insurgentes, como os terroristas são também conhecidos em Moçambique. “É importante o apelo do professor que de forma emocionada fala deste caso, destas meninas, e apela à devolução destas crianças”, diz o sacerdote à Fundação AIS.
O Padre Fonseca lembra ainda que a passagem dos homens armados pelas aldeias de Cabo Delgado se tem traduzido normalmente em mortes, no desaparecimento de pessoas, mas também na destruição de casas e infraestruturas, nomeadamente igrejas e capelas e que isso afecta directamente a comunidade cristã. “Estamos a falar” – diz o padre – “na destruição de capelas nestas regiões. Muitos cristãos já não têm onde rezar. Hoje, domingo [dia em que enviou a mensagem], em muitos lugares [os cristãos] não tiveram templo para celebrar a Palavra de Deus, para celebrarem o Dia do Senhor…”
Estamos a falar na destruição de capelas nestas regiões. Muitos cristãos já não têm onde rezar. Hoje, domingo [dia em que enviou a mensagem], em muitos lugares [os cristãos] não tiveram templo para celebrar a Palavra de Deus, para celebrarem o Dia do Senhor…” Padre Kwiriwi Fonseca
Mais de 60 mil novos deslocados
Os testemunhos do professor primário e da jovem mulher que escapou a um possível rapto, ilustram a situação de tragédia que se vive na região norte de Moçambique, que tem assistido nas últimas semanas, especialmente após o final do mês de Julho, a uma escalada de violência por parte dos terroristas, calculando-se que, desde então, haverá cerca de 60 mil novos deslocados, ou seja, pessoas que foram forçadas a fugir, a abandonar as suas aldeias nos distritos de Chiúre, Muidumbe, Quissanga, Ancuabe, Meluco e, mais recentemente, Mocímboa da Praia.
País prioritário para a Fundação AIS
Moçambique é um país prioritário para a Fundação AIS no continente africano. A solidariedade dos benfeitores da Ajuda à Igreja que Sofre tem permitido levar a este país, especialmente à região de Cabo Delgado, diversos projectos de assistência pastoral e de apoio psicossocial às populações vítimas do terrorismo, mas também fornecimento de materiais para a construção de dezenas de casas, centros comunitários e ainda a aquisição de veículos para os missionários que trabalham junto dos centros de reassentamento que abrigam as famílias fugidas da violência.
Desde que começaram os ataques em Cabo Delgado, em Outubro de 2017, calcula-se que já tenham morrido mais de seis mil pessoas e mais de um milhão foram forçadas a fugir da violência dos grupos terroristas que reivindicam, cada vez com mais frequência, pertenceram ao Daesh, a organização jihadista estado Islâmico.
Paulo Aido – Fundação AIS