Partida de Barcelona a 31 de agosto, a Flotilha Global Sumud para Gaza, composta por cerca de 35 embarcações e militantes de 44 nacionalidades, viu a sua odisseia marcada por atrasos, incidentes técnicos, suspeitas de sabotagem e crescentes divisões internas. O objetivo declarado continua a ser romper o bloqueio israelita e entregar alimentos, água e material médico na Faixa de Gaza, mas a expedição arrisca-se a ficar mais conhecida pelas suas convulsões internas do que pela missão militante e humanitária.
O porto tunisino de Bizerte foi palco de um episódio revelador das tensões latentes. Khaled Boudjemaa, dirigente da secção Magrebe da Flotilha, desligou-se do projeto em sinal de protesto contra a inclusão do ativista queer tunisino Saif Ayadi, considerado por alguns participantes como uma presença “imposta” e alheia à causa palestiniana. A polémica incendiou as redes sociais na Tunísia, com militantes e figuras públicas, como o apresentador Samir El Wafi, a rejeitarem a associação do movimento pró-Gaza a “agendas externas” como o “LGBTismo”.
As dificuldades não ficaram por aí. A embarcação principal denunciou ter sido alvo de ataques com drones não identificados nos dias 9 e 10 de setembro, provocando um princípio de incêndio. Enquanto os ativistas apontaram Israel como o responsável, as autoridades tunisinas oscilaram entre a primeira versão de “acidente” e a segunda de “agressão premeditada”. Para complicar, um mega-iate terá desviado grande parte do combustível do porto, obrigando à mobilização urgente de camiões-cisterna.
Este clima de instabilidade levou as autoridades tunisinas a deslocar os militantes para Bizerte, onde a polícia recolheu minuciosamente dados e impressões digitais dos participantes. As peripécias sucessivas acabaram por desmotivar parte da tripulação, que regressou a casa de avião.
A crise interna atingiu maior visibilidade com a saída de Greta Thunberg do comité diretor da flotilha. A ativista sueca, que se limitou a dizer que continuaria como “participante e organizadora, mas não como dirigente”, transferiu-se discretamente do navio Family para a embarcação Alma, arrastando a mala no cais de Tunes, como relatou o jornal Il Manifesto.
Também o influencer pró-Gaza Yusuf Omar, com mais de 280 mil seguidores, abandonou o comité de comunicação, acusado por colegas de dar uma cobertura “sensacionalista” ao incidente dos drones. Ambos justificaram a sua decisão com “divergências internas” e com o receio de que as polémicas da viagem ofusquem a tragédia humanitária em Gaza.
A nível político, houve igualmente baixas. O deputado da extrema-esquerda francês Thomas Portes (LFI) recuou alegando motivos pessoais e familiares, embora outros colegas da mesma bancada, como Rima Hassan, Emma Fourreau e François Piquemal, mantenham presença ativa a bordo.
Portugueses e Brasileiros permanecem apesar das turbulências
De Portugal, três nomes ganharam destaque a bordo. A coordenadora do Bloco de Esquerda, Mariana Mortágua, que suspendeu temporariamente o seu mandato como deputada, devido aos sucessivos atrasos da Flotilha, permanece a bordo. Miguel Duarte, ativista já conhecido pelo trabalho com migrantes no Mediterrâneo, que viaja numa das embarcações que sofreu um suposto ataque com drones no porto tunisino de Sidi Bou Saïd. A atriz Sofia Aparício que também faz parte da flotilha.
Segundo fontes da organização, foi precisamente o barco com bandeira portuguesa que registou um princípio de incêndio, supostamente causado por um “ataque externo”.
O Brasil enviou uma das maiores delegações, composta por ativistas, dirigentes políticos e representantes de movimentos sociais. Entre os mais visíveis está o controverso Thiago Ávila, ativista ligado ao PSOL, simpatizante do Hezbollah libanês, que já participara em outras iniciativas semelhantes, e Bruno Gilga Rocha, porta-voz da delegação e coordenador do barco Sirius, encarregado da comunicação internacional.
A bordo segue ainda a vereadora Mariana Conti (PSOL, Campinas), bem como Lucas Farias Gusmão, João Aguiar, Mohamad El Kadri, Magno Carvalho Costa, Ariadne Telles, Lisiane Proença, Carina Faggiani, Victor Nascimento Peixoto, Giovanna Vial e Gabrielle Tolotti, presidente do PSOL no Rio Grande do Sul.
Se, por um lado, a presença destas figuras públicas amplia o alcance mediático da flotilha e reforça o caráter internacional da causa, por outro, os incidentes em território tunisino, os supostos ataques denunciados, os atrasos sucessivos e as tensões ideológicas entre os participantes, levantam dúvidas sobre a coesão da iniciativa.
One Comment
Eis a diferença entre o Jornalismo e a toxicidade do universo das redes (a)sociais.
Parabéns pelo trabalho, pela força da pesquisa e da argumentação fundada, de um ou uma verdade Jornalista.
Obrigada por apagarem os incêndios que essas redes ateiam a cada minuto que passa!…